Como ensino filosofia? #3 - Ensinamos o que aprendemos





  Desde os primórdios, o ato de educar está relacionado a transmitir algo a outrem, sobretudo à gerações mais jovens. O presente vídeo não está apontando para este algo, enquanto conteúdo, mas sim ao modo como se ensina. Ou seja, é verdade que muito do ensino escolar ainda está voltado para um reprodutivismo de conteúdos, cuja utilidade e pertinência pode e deve ser contestada. Mas aqui me interessa falar de uma espécie de reprodutivismo pedagógico, isto é, a tendência a comportar-se, enquanto professor, da forma como nos habituamos a nos relacionar com professores enquanto éramos alunos. Assim, revendo o vídeo, agora me parece que uma formulação mais rigorosa para o que eu afirmei seria: “Ensinamos da forma como fomos ensinados”.

O “controle” da sala: uma queda de braço

  O modelo do ensino escolar está intimamente relacionado não só à condução da aprendizagem por parte do professor, mas também ao controle da turma envolvida neste processo de aprendizagem. Para alguns professores, o controle da turma é a condição fundamental (em filosofia usamos a expressão condição sine qua non) para o desenvolvimento de seu trabalho junto aos alunos. Outro profissionais vão encontrando meios de seguir com suas aulas mesmo de posse de um controle parcial ou mínimo, evitando assim o desgaste excessivo com os alunos a cada aula.

  É a busca por este controle que transforma a interação entre alguns professores e alunos numa verdadeira guerra, lamentavelmente. É a busca por este controle que torna a escola um lugar mais opressivo, que quase sempre dá mais voz ao professor do que ao aluno. É a busca por este controle que por vezes transforma conselhos de classe em verdadeiros tribunais de inquisição.

  De fato, há grandes teóricos que questionam frontalmente esta necessidade de controle sobre a qual a escola tradicional está estruturada. Alguns a denunciam como um mecanismo de inserção e conformação da criança e dos jovens ao sistema vigente. Em Liberdade sem medo, A. S. Neill coloca de forma brilhante essa questão: 
   A criança modelada, condicionada, disciplinada, reprimida, a criança sem liberdade cujo nome é Legião, vive em todos os recantos do mundo. Vive em nossa cidade, mesmo ali do outro lado da rua. Senta-se a uma carteira monótona de monótona escola, e mais tarde senta-se a uma escrivaninha ainda mais monótona de um escritório, ou no banco de uma fábrica. É dócil, disposta a obedecer à autoridade, medrosa da crítica e quase fanática em seu desejo de ser normal, convencional e correta. Aceita o que lhe ensinaram quase sem indagações, e transmite a seus filhos todos os seus complexos, medos e frustrações. (NEILL,1970,p.89)
  Neill foi muito além da teoria e fundou no início do século XX a escola de Summerhill, um espaço verdadeiramente democrático onde os alunos podem decidir, se organizar e atuar a respeito de sua própria educação. Summerhill resistiu por décadas a persistentes ataques institucionais e tentativas de fechamento, e ainda hoje continua de portas abertas a inspirar outras escolas alternativas pelo mundo.

  Mas enquanto isso, continuo em sala de aula tão enredado quanto meus alunos em um sistema autoritário desde sua estrutura! Daqui de onde eu falo, é preciso reconhecer que um professor que abra mão de qualquer controle em sala de aula está arriscando muito. Arriscando sua “imagem” frente aos alunos, sua reputação enquanto profissional, arriscando também a oportunidade de ensinar algo e mesmo a integridade física de seus alunos, que hoje se envolvem facilmente em agressões ou brincadeiras brutas que podem acabar mal.

  Assim, com exceção das propostas alternativas de educação, o cenário da escola comum demanda algum tipo de controle sobre os alunos. Mas esta necessidade de controle não precisa necessariamente estar ancorada no autoritarismo, na cara sisuda diante de toda manifestação espontânea e numa espécie de aura de respeito que a figura de um mestre impunha naturalmente no passado, e que hoje se desfez em meio à cultura contemporânea. 









  
  E quanto à filosofia? Não coube justamente a ela questionar ao longo da história a hierarquia e a submissão imposta à força? Não coube a ela sempre reagir diante argumentos de autoridade e de toda forma de opressão? É coerente um professor de filosofia querer ensinar reflexão crítica e questionamento filosófico mantendo um clima ditatorial em sala de aula? Como um professor pode levar a atitude filosófica para a sala de aula, se, a cada aula, se entrega a uma queda de braço com seus alunos pela palavra e pelo “controle”?

  Eu não tenho respostas definitivas para estas perguntas, nem soluções milagrosas. Mas minha intuição é que a própria filosofia nos dá algumas pistas para uma atuação diferenciada e para uma verdadeira conquista do espaço e da voz do professor na sala, esquivando-se da queda de braço pelo controle. Seguem neste segundo vídeo algumas experiências nesse sentido.
  Assim, a negociação me parece ser um elemento fundamental no vivência diária com os alunos em sala de aula. Mas não a negociação enquanto barganha, que remonta ao contexto comercial no qual a moeda de troca é a nota. Falo da negociação entre ideias que a filosofia sempre estimulou. É a necessidade intuitiva de fazer silêncio e ouvir o outro para que se possa, no momento de falar, ter sua palavra respeitada.  Isso remonta à filosofia socrática, mas também ao nascimento da própria democracia grega.

  Neste sentido, o “controle” da sala pelo professor pode assumir outras feições, por vezes motivado pela admiração, curiosidade ou mesmo camaradagem, quando meus alunos percebem que estou tentando fazer meu trabalho seriamente, mesmo que eles não deixem.

  E eis que outros elementos como a escuta, a empatia e a tolerância passam a figurar como ferramentas alternativas para manter alguma ordem em sala. Ouvir seus alunos; dizer a verdade; não faltar com a palavra, mesmo em coisas simples; mostrar comprometimento; estas são atitudes que dão ao professor um soft power que muitos profissionais da educação ignoram. Isso não se constrói de um dia para o outro, mas os resultados a médio prazo tem sido muito satisfatórios. 

Acompanhe o projeto "Como ensino filosofia?". Toda quinta um novo conteúdo :)


Referências:

NEILL, A. Liberdade sem medo - Summerhill. 9a ed. São Paulo: Ibrasa, 1970.

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