Afinal, o que torna o homem um ser possuidor de humanidade?

Eis mais um ensaio produzido na UA Reflexões sobre o Homem na Filosofia.

Afinal, o que torna o homem um ser possuidor de humanidade?

Flávia O. Alvim[1]

O cinema estadunidense tem proporcionado ao grande púbico, a oportunidade de oferecer uma reflexão acerca da nossa própria condição, enquanto seres pensantes, existenciais, intersubjetivos e puramente humanos. Reconhecendo a importância do cinema para a análise sobre o ser humano condicionado ao existir, analisaremos dois filmes intitulados O homem bicentenário (1999) do diretor Chris Columbus e o A. I. – Inteligência artificial (2001) do diretor Steven Spielberg. Ambos discutem a respeito de seres artificiais que apresentam características tipicamente humanas. Além de apontar os principais elementos constitutivos de tais produções cinematográficas referidas, utilizaremos como fio condutor de nossa análise antropológica-filosófica, os breves pensamentos dos filósofos Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre sobre a condição do homem na existência humana, ou melhor, na vida.
Em se tratando da trama do filme O homem bicentenário, a história é a respeito de um robô que foi projetado (ou programado) para o trabalho doméstico, mas tal “ser artificial” foi visto como defeituoso pela empresa que o produziu, ao mesmo tempo em que “fascinou” o seu proprietário, devido ao seu senso artístico (construiu um cavalo feito de madeira para a filha de seu proprietário e depois, passou a fazer os relógios de pêndulo), a sua criatividade, a sua personalidade sociável e a sua curiosidade em compreender a complexidade do mundo humano. Percebendo a sua curiosidade, o proprietário se engajou em ensiná-lo sobre a realidade e a condição humana, enfatizando desde os aspectos biológicos aos sociáveis, pois sabia que havia ideias, conceitos, fatos, experiências que não estavam em sua programação. Diante disso, sob um viés sartreano, o proprietário estava investindo no vir-a-ser[2] de seu robô, ajudando-o a construir, moldar a sua realidade. A partir daí, a “existência precede a essência” [3], o que significa nas palavras de Sartre que

[...] primeiramente existe o homem, ele se deixa encontrar, surge no mundo, e que ele só se define depois. O homem tal como o concebe o existencialista não é definível porque, inicialmente, ele nada é. Ele só será depois, e ele será tal como ele se fizer. [...] O homem é apenas não somente tal como ele se concebe, mas tal como ele se quer, e como ele se concebe após existir, como ele se quer depois dessa vontade de existir – o homem é apenas aquilo que ele faz de si mesmo[4].

 Articulando essa noção sartreana com a relação do proprietário em ensinar as “coisas da vida existencial” para o robô, é possível que o “ser artificial” tenha a sua existência comprovada, através da “formação” que recebeu de seu proprietário e da sua busca por um sentido constante, isto, porque o robô incorporou o que é a sua essência[5] em momentos distintos de sua realidade vivida. Após tomar a base dos fatos históricos acerca da busca pela liberdade, o robô oferece dinheiro ao seu proprietário em vista de “ser livre”, mas é surpreendido pela consequência de sua própria escolha de “ser livre”: a incompreensão de seu proprietário, que o fez partir de sua casa. Saindo da casa de seu (ex)proprietário, o robô se transforma em um ser-no-mundo aos moldes heideggeriano, onde o mundo é “um conjunto de utensílios, ou seja, de coisas a utilizar, à mão, e não das coisas a contemplar como presentes”[6]. Estando no mundo, o robô procura construir seu próprio espaço, a aprender mais acerca da vida, a buscar por seus semelhantes e suas origens. Tomando posse de sua liberdade, que pelo viés sartreano o homem é responsável por tudo o que faz em sua vida[7], e se posicionando como um ser condicionado ao mundo, posteriormente, o robô decide se transformar em um andróide com feições humanas, além de melhorar o seu mecanismo com a inserção de órgãos artificiais, possibilitando que experimentasse o mundo com mais profundidade. Só que tais melhorias não permitiu que o tornasse um homem por completo, devido ao fato de que não compartilhava o destino de todo humano: a morte. Segundo Heidegger, o ser está sempre diante dessa possibilidade, porque o homem é um ente que está no mundo para a morte. Na verdade, a morte é

[...] uma possibilidade presente constantemente, e não distante. [...] esta possibilidade (a morte) é a última que o homem realiza; que enquanto ela chega falta ao homem alguma coisa, algo que ainda será. Ou seja, a vida humana só torna-se um todo por intermédio da morte[8].

A totalidade da vida é conquistada, conforme a visão heideggeriana, por meio da morte, pois ela é a única possibilidade de alcançar a individuação. Por isto, o robô-andróide consegue ser reconhecido como humano mais velho (200 anos de idade) pela sociedade, mesmo que tenha se programado para morrer, porque através da morte atingiria a sua individuação, como uma possibilidade que determina a totalidade de seu ser, que o limita e ao mesmo tempo em que permite ser completo[9].
Reconhecendo que existe elementos próximos entre os enredos do A.I. – Inteligência artificial e O homem bicentenário, pois ambos apresentam seres artificiais com comportamentos humanos, como a capacidade de amar, de possuírem sensibilidade com o seu meio “familiar” e a busca constante de querer alcançar algo que é inatingível na realidade. O A. I. – Inteligência artificial indica o paradoxo da vida humana frente a criação de robôs programados para suprir as necessidades afetivas e emocionais dos humanos. Após as catástrofes ecológicas, no século XXII, a humanidade passa a conviver com os seres artificiais, que são androides com réplicas das feições humanas e estes, não têm direitos civis reconhecidos e são obrigados pelo Governo a terem registro, pois sem este são destruídos. A trama da história é, inicialmente, em torno de um casal que tem um filho com uma doença rara e está criogenizado em vista de que seja curado. O marido para animar a sua esposa entristecida, aceita a proposta de uma empresa que produziu o primeiro robô criança, programado para amar e expressar sentimentos aos pais. Com o passar das semanas, o filho desse casal se recupera retornando para o seu lar. A partir disso, o drama do robô criança se torna tenso, devido ao afogamento acidental do filho do casal, causado pelo robô infantil. Por não ter coragem de mandá-lo de volta para a empresa, a esposa que estava angustiada pelo acidente do filho, abandona o robô criança numa floresta juntamente com o seu ursinho. Neste momento, o robô criança conhece as circunstâncias de outros robôs, que danificados, procuram peças para serem reutilizadas. Além de serem capturados pelos humanos para que sejam aniquilados na arena, o robô criança conhece um robô adulto programado para funções sexuais. Quando o robô criança juntamente com o adulto foram levados para a arena, se percebe o ódio e o repúdio dos humanos com as máquinas. Daí, podemos lembrar que o homem é um ser-para-outros no pensamento sartreano, isto é,

[...] o outro não é aquele que é visto por mim, mas muito mais aquele que me vê, aquele que se torna presente a mim, para além de qualquer dúvida, mantendo-me sob a opressão de seu olhar. [...]  O olhar do outro me fixa e me paralisa, ao passo que, quando o outro estava ausente, eu era livre, isto é, era sujeito e não objeto. Quando aparece o outro, portanto, nasce o conflito: “o conflito é o sentido original do ser-para-outros”. Diz ainda Sartre: “Minha queda original é a existência do outro”[10].

O robô criança e o robô adulto estavam passando pelo crivo dos humanos, sob o olhar inquiridor e discriminatório, por não pertencerem a espécie. Aqui, se deriva uma questão: ao mesmo tempo em que o ser humano cria ou projeta uma máquina ou um ser artificial, aquele para não perder a sua superioridade racional, destrói a sua criação ou a sua projeção. Escapando da arena, o robô criança e o robô adulto vão em busca da “fada azul”, para que o primeiro realize o seu sonho de se tornar um menino em vista de sua mãe amá-lo. Conseguindo receber informações acerca da “fada azul”, a qual foi direcionado ao seu criador, percebeu que não era o único robô infantil, mas que havia várias réplicas de sua série. Sendo assim, o robô criança ficou desiludido pelo que viu na empresa de seu criador e se jogou no oceano, encontrando uma estátua da “fada azul”. Após centenas de anos, os robôs mais evoluídos dominaram a terra e resgataram o robô criança, realizando o seu desejo de rever a sua mãe, pelo menos por um dia.
Percorremos pelas trilhas das tramas dos filmes O homem bicentenário e o A.I. – Inteligiência artificial, analisando os principais elementos de reflexão a respeito do que torna o homem ser humano, pois esta é a intenção apresentada por ambos, mesmo que as suas circunstâncias sejam distintas. Mas, a questão indicada é: “Até que ponto um ser artificial pode ser considerado humano, já que pode possuir feições e comportamentos humanos, como o raciocínio, sentimentos, sensibilidade e emoções?”. Ou melhor, “Como é possível transferirmos nossas características que nos tornam ‘humanos’ para seres com inteligência artificial, embora estes serão imortais diferentes de nós, que possuímos finitude existencial?”. O paradoxo que ambos os filmes apontam é que os seres artificiais, dificilmente serão reconhecidos e aceitos como seres a nível do homem, por causa de sua estimativa de vida que é mais prolongada do que a dos seus criadores. Afinal, o que nos define com um caráter iminentemente humano, não é somente o intelecto e os sentimentos, mas o destino impossível de ser escapado: a morte. Eis a possibilidade última do ser humano de se transformar em um ser com a vida em plena totalidade conquistada e completa.


REFERÊNCIAS:
A.I. – Inteligiência artificial. Direção: Steven Spielberg. Produtores: Steven Spielberg; Jan Harlan; Kathleen Kennedy; Walter F. Parkes; Bonnie Curtis. Burbank: Warner Bros. Pictures; DreamWorks Pictures, 2001. 1 DVD.
CHAUÍ, Marilena. Martin Heidegger: vida e obra. In: Os pensadores: Martin Heidegger – Conferências e Escritos Filosóficos. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 5-10.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: Dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
NESI, Maria Juliani; MARQUES, Carlos Euclides. Reflexão sobre o homem na filosofia: livro didático. Palhoça: UnisulVirtual, 2017.
O HOMEM bicentenário. Direção: Chris Columbus. Produtores: Chris Columbus; Michael Barnathan; Laurence Mark; Wolfgang Petersen; Mark Radcliffe. Los Angeles: Columbia Pictures; Burbank: Touchstone Pictures, 1999. 1 DVD.
REALE, Giovanne; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: De Nietzsche à Escola de Frankfurt. São Paulo: Paulus, 2006.
SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é humanismo. Disponível em: <http://stoa.usp.br/alexccarneiro/files/-1/4529/sartre_exitencialismo_humanismo.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2017.
WATANABE, Adriano; BRESSAM; Alessandra; PARDAL, Poliana P. M. Conceitos do Existencialismo vistos sob a ótica de Martin Heidegger. Brasil Escola. Disponível em: <http://meuartigo.brasilescola.uol.com.br/filosofia/conceitos-existencialismo-vistos-martin-heidegger.htm>. Acesso em: 10 abr. 2016.



[1] Estudante do curso de Filosofia – Bacharelado da Unisul Virtual.
[2] NESI, Maria Juliani; MARQUES, Carlos Euclides. Reflexão sobre o homem na filosofia: livro didático. Palhoça: UnisulVirtual, 2017. p. 122.
[3] Para fundamentar a sua perspectiva filosófica acerca do existencialismo, o filósofo francês Jean-Paul Sartre “tomou” esta máxima “existência precede a essência” do filósofo alemão Martin Heidegger. (NESI, Maria Juliani; MARQUES, Carlos Euclides. Reflexão sobre o homem na filosofia: livro didático. Palhoça: UnisulVirtual, 2017. p.118-119.)
[4] SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é humanismo. Disponível em: <http://stoa.usp.br/alexccarneiro/files/-1/4529/sartre_exitencialismo_humanismo.pdf>. p.4
[5] Aqui, a palavra “essência” é compreendida como “é o que faz com que uma coisa seja o que é, e não outra coisa”. (NESI, Maria Juliani; MARQUES, Carlos Euclides. Reflexão sobre o homem na filosofia: livro didático. Palhoça: UnisulVirtual, 2017. p. 119).
[6] REALE, Giovanne; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: De Nietzsche à Escola de Frankfurt. São Paulo: Paulus, 2006. p. 205.
[7] Ibid., p. 228.
[8] WATANABE, Adriano; BRESSAM; Alessandra; PARDAL, Poliana P. M. Conceitos do Existencialismo vistos sob a ótica de Martin Heidegger. Brasil Escola. Disponível em: <http://meuartigo.brasilescola.uol.com.br/filosofia/conceitos-existencialismo-vistos-martin-heidegger.htm>.
[9] WATANABE; BRESSAM; PARDAL, op. cit.
[10] REALE, Giovanne; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: De Nietzsche à Escola de Frankfurt. São Paulo: Paulus, 2006. p. 229.

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