Burocracia e Filosofia
Compartilho com os leitores do Blog de Filosofia da Unisul, o relato de um incidente que culminou na minha eliminação do processo seletivo para doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina, neste final de ano de 2017.
Não se trata aqui de mera lamentação pública, mas de um caso que nos dá a pensar sobre os impasses constantes em nosso tempo entre o domínio da razão instrumental burocratizada e a dimensão do indivíduo e de sua existência.
Não se trata aqui de mera lamentação pública, mas de um caso que nos dá a pensar sobre os impasses constantes em nosso tempo entre o domínio da razão instrumental burocratizada e a dimensão do indivíduo e de sua existência.
CARTA
ABERTA
À
coordenação do programa de pós-graduação em Filosofia da
Universidade de Santa Catarina.
Venho
por meio desta manifestar minha discordância e repúdio em relação
à resolução do colegiado do programa de pós-graduação em
filosofia por invalidar as provas de sete candidatos (mestrado e
doutorado) desclassificando-os sumariamente do processo seletivo de
2017.
O
fato
No
dia 4/12/2017 sete candidatos ao mestrado e doutorado em filosofia
foram inicialmente impedidos de ter acesso ao local da prova, em
virtude de um atraso que variou entre 2, 4 minutos (o meu caso) e 8
minutos em relação ao horário de uma hora antes do início da
prova de conhecimento. Mediante uma “insistência veemente”
(palavras da ata da reunião extraordinária do colegiado), os
candidatos foram autorizados a realizar a prova sub
júdice, sujeitando-se à
apreciação do colegiado quanto à sua aceitação ou não de
continuar no processo seletivo.
No dia 6/12/2017 em reunião extraordinária o colegiado decidiu por
unanimidade de 7 votos não considerar válidas as provas dos
candidatos realizadas condicionalmente pelos 7 referidos candidatos.
Controvérsias
quanto ao edital e
ausência de sinalização do local de prova
Argumentando
a partir de um ponto de vista objetivo, é um fato que o edital do
processo seletivo sinaliza a necessidade do comparecimento ao local
da prova uma hora antes do início da mesma. Como
consta no documento:
A
prova de conhecimento filosófico será realizada no dia 4 de
dezembro de 2017, no auditório do CFH (Centro de Filosofia e
Ciências Humanas), devendo o candidato se apresentar no local até
às 8 h00. A prova será das 9h às 13h...
Sim,
os candidatos devem
se apresentar até
às 8h. Todavia,
não está expressamente sinalizada a desclassificação sumária dos
candidatos mediante a ausência neste prazo de tempo, uma
vez que a prova só teria início uma hora mais tarde. Ora, editais
são chatos de ler porque são redundantes e detalhistas ao extremo.
E são assim para que não haja
discordância quanto a detalhes como este. Vejamos, como exemplo os
editais do ENEM 2017 e do vestibular da própria Universidade
Federal de Santa Catarina:
10. DOS HORÁRIOS
10.1
Nos dias de realização do Exame, os
portões de acesso aos locais de provas serão abertos às
12h e fechados às 13h, de acordo com o horário oficial de
Brasília-DF, sendo estritamente proibida a entrada do
PARTICIPANTE que se apresentar após o fechamento dos portões.
10.2 A aplicação das provas
terá início às 13h30min, horário oficial de Brasília-DF, em
todas as Unidades da Federação (ENEM, 2017 – grifo nosso)
5.6 - O portão de acesso ao
local de realização das provas será aberto às 13h e fechado às
13h45min, em todos os dias do concurso vestibular.
5.6.1 -Ao entrar no local de
prova, o candidato deverá dirigir se imediatamente ao grupo
(sala) no (a) qual está alocado.
5.6.2
-O candidato que chegar
ao local de prova após o fechamento do portão de acesso não
poderá realizá-la, independentemente dos motivos alegados (UFSC,
2017 – grifo nosso)
Assim,
ainda
que se argumente que a
proibição da entrada na sala de prova após as 8h esteja implícita
na frase “devendo
o candidato se apresentar no local até às 8 h00.”, me
parece evidente que a falta de ênfase quanto a este ponto é uma
falha no referido edital. Para
bom entendedor meia
palavra basta
não é o tipo de máxima que se aplica a editais de concursos.
Em
segundo lugar um erro bem mais grave foi responsável pela
desclassificação de alguns dos sete desventurados candidatos NÃO
HAVIA NENHUM TIPO DE SINALIZAÇÃO INDICANDO O LUGAR DA PROVA ao
longo do CFH e nem mesmo no Hall do bloco onde se encontra o
auditório. Embora
este não tenha sido o meu caso em particular, foi dramática a
situação de uma colega que se deslocou do estado de Minas Gerais e
estava pelo CFH desde às 7h da manhã, mas aguardando no local
errado. Outra, vinda de Curitiba, perdeu-se pela UFSC e ainda
conseguiu chegar ao local da prova às 8:02, trazida pela boa vontade
de um estudante que passava.
Mesmo esta falha grave não
serviu como justificativa para os responsáveis pelo processo
seletivo, que a princípio nos disseram para simplesmente ir embora
pois não tínhamos o direito de fazer a prova. Somente após muita
conversa e argumentação os coordenadores tomaram uma atitude mais
acertada: permitir que realizássemos a prova deixando a questão
para o julgamento do colegiado.
Neste
sentido, a
meu ver, foi o desfecho do impasse a parte mais lamentável. Em vez
de reconhecer as limitações do edital e a falha de sinalização do
local de prova, considerando justificado o atraso de menos de 10
minutos dos candidatos (ou pelo menos daqueles que vieram de fora), o
colegiado assumiu por unanimidade uma postura intolerante e
insensível. Embora a ata da reunião se refira a uma “ampla
discussão” que levou à
decisão final, sinceramente tenho minhas dúvidas se as cartas de
justificativas escritas por cada um dos sete candidatos foram
devidamente consideradas, ou sequer lidas (uma
vez que nem foram mencionadas na ata da reunião).
Sob
a ótica de um sujeito
Em se tratando de uma carta
aberta, peço a permissão do leitor para adentrar a um âmbito menos
objetivista e mais existencial.
Trabalhando em dois empregos
como professor de filosofia e desejando retornar aos estudos
acadêmicos, dediquei minhas horas vagas dos últimos 12 meses à
elaboração de um projeto de doutorado e preparação para a prova
de conhecimentos do referido processo seletivo. Resido no município
de Garopaba e no dia 4 de dezembro me levantei bem antes do sol, a
fim de percorrer os 100 km que me separam da Universidade Federal de
Santa Catarina. Saindo de casa às 5h40min segui com meu carro rumo à
Floripa, deparando-me com o já esperado congestionamento na região
da Palhoça, Grande Florianópolis. A este momento consultei o
relógio, eram 6h:45 min. Permaneci tranquilo, uma hora e quinze
minutos deveriam bastar para superar o trânsito lento e chegar com
tempo de sobra para a prova, marcada para as 9h. Sim, eu estava
ciente de que devia me apresentar às 8h no auditório para a
prova. Mas não, eu não interpretei da mesma forma que os
coordenadores do processo a interdição ao meu acesso ao local da
prova após às 8:00hs.
Por fim, minha crença apta
mostrou-se verdadeira, pois às 7h59min. eu estava estacionando meu
veículo bem em frente ao CFH (surpreso por ter conseguido uma vaga
com facilidade). Despreocupadamente separei minhas coisas e fechei
meu carro (esses fatídicos 3 min!), caminhando em direção ao bloco
onde se situa o auditório. Exatamente às 8h04 min eu estava sendo
impedido de ter acesso ao local da prova, como descrito inicialmente.
Deixo para o leitor o
julgamento sobre se a minha prioridade pessoal em me apresentar até
às 8h justificaria uma infração de trânsito ao descer o morro
da carvoeira à 90 km/h, ou uma mera censura moral ao não dar
passagem para aquelas senhoras na faixa de pedestre no saco dos
limões... Talvez eu devesse ter largado o carro todo aberto,
vencendo assim os 4 minutos de atraso que me impediram de ser
avaliado pelo trabalho de um ano inteiro. Mas o fato é que não
estava claro para mim, como consta nos demais editais supracitados,
que o candidato que chegasse ao local de prova após às 8h não
poderia realizá-la “independente dos motivos alegados” (Edital
do vestibular da UFSC). Acredito que isso faria toda a diferença em
minhas micro escolhas naquela manhã.
Mas o motivo dessa digressão
ao meu infortúnio pessoal, não é o de despertar pena ou empatia no
leitor para as contingências da vida. Introduzo aqui a dimensão
particular de um sujeito para contestar a avaliação da reunião do
colegiado, que, a meu ver errou em julgar o caso mantendo
o sigilo sobre os nomes dos
candidatos. A prática de avaliação às cegas é um instrumento
indispensável para assegurar a transparência do processo seletivo,
sem dúvida. Todavia, neste caso especial precisamente a identidade
dos candidatos e suas justificativas pessoais seriam as responsáveis
por revelar as limitações e falhas do processo seletivo indicadas
acima, bem como sinalizar o incidente como um desses momentos em que
o bom senso deve se sobrepor às regras.
Conforme consta na referida
ata da reunião do colegiado, “foi mantido o anonimato dos
candidatos”, de modo que o debate girou em torno do fato em seu
aspecto externo, de fácil decisão sob uma perspectiva impessoal. Ou
seja: os candidatos (9, 15, 33, 26, 23, 31 e 36) descumpriram o
edital, portanto, devem ser eliminados. Assim, fomos julgados como
números e não como pessoas; não como pesquisadores cujo
comprometimento com sua pesquisa os conduziu às etapas finais do
referido processo de seleção. Prefiro pensar que foi este tipo de
abordagem impessoal que motivou uma votação unânime pela
eliminação, inclusive da parte de alunos da pós-graduação.
Prefiro acreditar nisso a reconhecer um grupo de acadêmicos em
filosofia completamente alheio à dimensão do outro; optando pela
saída burocrática mais rápida em vez de reconhecer duas falhas
consideráveis no processo de seleção… Não me cabe julgar.
Por fim, esclareço que não
foi a minha intenção ao escrever essa carta reivindicar uma mera
exceção à regra para salvaguardar meus próprios interesses.
Reitero que se o edital vedasse claramente o acesso ao local da prova
“sob nenhuma alegação” eu certamente teria feito meia volta em
meio ao CFH, sem nem mesmo bater à porta; regras são regras.
Todavia uma pequena dose de bom senso e tolerância (pelo
reconhecimento da falta de sinalização do local de prova, do
manifesto problema de mobilidade urbana em Florianópolis e até
mesmo pela dificuldade em encontrar uma vaga dentro da UFSC) poderia
ter, ali mesmo no momento da prova ou na reunião do colegiado,
minimizado o problema e feito a diferença na vida de sete pessoas.
Todo o meu respeito à instituição na qual me formei e aos grandes
professores que ali se encontram. Mas dessa vez venceu a burocracia,
não a filosofia.
Ora, por toda parte onde se
esbate ou se dissolve a ideia humanista (tornando-se cada vez mais
frágil), por toda parte onde se retira o fermento crítico, a
racionalização fechada devora a razão. Os homens deixam de ser
concebidos como indivíduos livres ou sujeitos. Deve, obedecer à
aparente racionalidade (do Estado, da burocracia, da indústria).
(MORIN, Ciência com Consciência,2013, p. 161)
Anseio que esta carta possa
contribuir para o aprimoramento de futuros editais dos processos
seletivos em filosofia e, quiçá, para uma conduta mais humanizada
em casos de exceção.
Dante
C. Targa, por hora, pesquisador independente
Lamentável Professor. Faltou bom senso para a Instituição.
ResponderExcluirMe parece que está faltando bom senso para tudo hoje em dia!!
ExcluirJá cursei três disciplinas com o Professor Dante e sei o quão sério e dedicado ele é em relação ao seu trabalho e ao cuidado com o outro. Ponto para a burocracia e a falta de bom senso, infelizmente.
ResponderExcluirDe fato, o edital deveria ser um pouco mais claro e a instituição deveria sinalizar melhor o local. Mas, o Dante fez, mais parte uma nova seleção e, merecidamente foi aprovado.
ResponderExcluirAinda assim, é sempre bom deixar o registro do fato.