Série Boas práticas- Filosofia na Idade Média 2020b

 

A (in)conciliável integração da fé com a razão

 

Ricardo Z. Fiegenbaum

 

            Num pequeno livro intitulado Crer é também pensar, o teólogo presbiteriano inglês, John Stott, defende a ideia de que é impossível a fé sem a razão ou, nas suas palavras, crer sem pensar. Para ele, a fé não dispensa o uso da mente e, portanto, não é assunto apenas do coração, embora ele veja em três grupos da sociedade contemporânea a prevalência do emocionalismo e do subjetivismo em detrimento da razão. São eles os católicos, porque estão arraigados no ritualismo e não realizam um culto racional; os cristãos radicais, porque não conseguem se desprender da ação social, e os neopentecostais, que realizam um cristianismo de mente vazia, porque se baseiam em experiências particulares e fazem delas suas doutrinas. Os três segmentos mostram sintomas de “uma mesma doença, o ante intelectualismo”. Com base em citações da Bíblia, Stott prega que a fé é essencialmente racional, é basicamente o ato de pensar, insistir em pensar e que todo o problema de quem tem pequena fé é não pensar.

            Stott apresenta três motivos para o fato de a fé não poder prescindir da razão: primeiro, os seres humanos foram criados para pensar; segundo, essa capacidade serve para compreender a revelação divina à humanidade; e terceiro, porque Deus nos julgará pelo nosso conhecimento, e por isso é necessário realizar um culto inteligente a um Deus que amamos com todo o nosso entendimento. Stott compara o emocionalismo e o subjetivismo como cabrestos e rédeas e esforça-se por mostrar que a orientação divina para a vida cristã vem por meio da capacidade humana de pensar. E é pensando que o fiel deve fazer a apresentação do evangelho, porque “a proclamação do evangelho precisa ter um sólido conteúdo” (STOTT, 1986, p. 45).

            Stott parece atualizar no século XX uma problemática que se estabeleceu na Filosofia a partir do início do que se convencionou chamar de Idade Média: a integração entre fé e razão como resultado do encontro da Filosofia Grega com o Cristianismo nascente. Em sua perspectiva, Stott defende que a fé é antes de tudo racional. Mas como aceitar pela razão que: a) os seres humanos somos criados por um deus; b) que é na razão que deus se revela, e c) que esse deus é juiz do que conhecemos? Estas questões orientam as reflexões a seguir com base no pensamento de Orígenes e de Agostinho, buscando demonstrar que a questão filosófica da relação entre fé e razão é, em última análise, mais uma questão de fé (de quem crê) do que da razão.

 

Para os gregos conhecerem

 

            A relação do Cristianismo com a Filosofia, segundo Chauí (2002), tem a ver com um imperativo evangelizador que acompanha a religião cristã desde os seus primórdios. A conversão era condição para o ingresso na religião. Os evangelizadores usaram diferentes expedientes para isso, dependendo da cultura e da mentalidade de cada grupo. Não foi diferente para alcançar os intelectuais gregos e romanos.

 

Para convertê-los e mostrar a superioridade da verdade cristã sobre a tradição filosófica, os primeiros Padres da Igreja ou intelectuais cristãos (São Paulo, São João, Santo Ambrósio, Santo Eusébio, Santo Agostinho, entre outros) adaptaram as ideias filosóficas à religião cristã e fizeram surgir uma Filosofia cristã (CHAUÍ, 2001, p. 222).

 

            Inicialmente, esta adaptação foi dedicada à temática moral e à propagação do evangelho. Mais tarde, adquiriu caráter apologético em defesa da fé cristã contra o paganismo e o gnosticismo. “A terceira fase é considerada a fase de consolidação do sistema doutrinário cristão, sob forte influência do platonismo e do estoicismo” (MARQUES; NESI, 2011, p. 62). É na segunda fase que se coloca de forma mais sistemática o esforço conciliatório da fé cristã com a razão, ou melhor, com a tradição filosófica grega. Deste período, destacamos o pensamento de Orígenes e de Agostinho.

            Orígenes utiliza uma série de recursos da filosofia grega para defender a fé cristã. Para ele, toda alma racional, “[…] por ter sido tocada pelo espírito divino, pode captar o significado do evangelho e vislumbrar a luz divina, mas não pode conhecer Deus n’Ele mesmo. Deus está fora do mundo criado e não pode ser captado pela alma que está inserida entre as coisas criadas e corruptíveis” (MARQUES; NESI, 2011, p. 76). Isso significa dizer que, para conhecer qualquer coisa sobre Deus, precisamos aceitar que ele é muito superior a qualquer pensamento que possamos ter dele e que a mente humana não é capaz de compreendê-lo.

            Mas Orígenes afirma, de acordo com Marques e Nesi (2011), que é possível ao ser humano reconhecer a divindade pela ascese, respeitando um processo gradativo que tem início na dialética, segue pelo conhecimento das coisas sensíveis até às verdades intelectuais e morais. Para ele, no entanto, alguns seres humanos ficam pelo caminho, contentando-se com essa luz que ainda não é força maior, entre os quais, possivelmente, estariam os filósofos gregos. E aqui Orígenes apela para o toque divino como condição para que o ser humano encontre o verdadeiro conhecimento. Concordando com Clemente, ele preconiza que ser verdadeiramente cristão é ter conhecimento; e ter conhecimento só é possível pela fé.

            Assim, portanto, a fé é a medida do conhecimento. Mas que conhecimento? O conhecimento que se submete à fé, o que abre caminho para que a Teologia projete sua sombra sobre a Filosofia.

            Agostinho, conforme Martin (2002), formula esta questão afirmando que a sabedoria de Deus é maior do que a sabedoria humana; assim, é claro, a razão tinha que ser subordina à fé e a filosofia à teologia. Essa subordinação se realiza na vida e no espírito do ser humano que se aplica a conhecer. “A subordinação da fé à razão não significava tirania da fé sobre a razão: uma vez que, quando propriamente compreendidas, eram reflexos, em diferentes formas, da verdade do conhecimento de Deus, elas não poderiam contradizer-se entre si” (MARTIN in: BUNNI; TSUI-JAMES, 2002, p. 503). A contradição, se houvesse, se deveria a um erro de raciocínio ou da compreensão da fé.

            Para Agostinho, ainda com base em Martin, quando a razão se equivocava, podia ser corrigida por si mesma, mas essa razão que corrige precisava estar iluminada pela luz da fé, embora não deixasse de ser razão. O problema, segundo aponta Martin, ocorria quando “um pensador era incapaz de corrigir a razão errônea por meio da razão iluminada: ele ficava com a dura escolha de rejeitar a razão, e cair no fideísmo, ou afirmar a autonomia da razão e cair no racionalismo” (MARTIN in: BUNNI; TSUI-JAMES, 2002, p. 504). Em ambos os casos o empreendimento da integração entre fé e razão restava comprometido.

            Orígenes e Agostinho, como de resto os filósofos cristãos deste período, parecem reintroduzir na tradição filosófica aquilo que os primeiros filósofos gregos tanto buscaram extirpar: o mito como forma de explicar o mundo, como verdade sobre o mundo. Ao fazê-lo, os filósofos cristãos reduzem o ser humano, e sua capacidade de conhecer por meio do uso da razão, a um ser aprisionado por uma força externa, divina, a que ele só tem acesso pela fé.

            Então, como aceitar, senão pela fé, que os seres humanos são criados por um deus; que esse deus se revela na razão e que, por consequência, estamos sujeitos ao seu juízo sobre o nosso conhecimento? Para quem crê, a sabedoria. Para quem não tem fé, resta o purgatório nesta Filosofia. E não importa quanto se afirme que crer é também pensar, se o pensar está subordinado à fé, não há razão para pensar, apenas para submeter-se e obedecer.

            Assim, se a fé é a única possibilidade para alcançar verdadeiramente o conhecimento, já não há razão para a Razão. Retornamos aos mitos e à interdição da Filosofia.

 

Referências

 

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 12. ed. São Paulo: Ática. 2002

MARTIN, C. F. J. Filosofia Medieval. In: BUNNIN, Nicholas; TSUI-JAMES, E. P. (orgs.). Tradução: Luiz Paulo Rouanet. Compêndio de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2002.

MARQUES, Carlos Euclides; NESI, Maria Juliani. História da Filosofia II. Livro didático. Palhoça: UnisulVirtual, 2011.

STOTT, John. Crer é também pensar. São Paulo: ABU Editora, 1986.

Comentários

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