A educação como um circuito

Aprender e ensinar não são coisas distintas. Isso já foi abordado com maestria por Freire:
"Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que o conotam, não se reduzem à condição de objeto um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender." (Pedagogia da autonomia, 1996,p.27)

Obviamente isso é verdade para o ato autêntico de ensinar/aprender, o que não exclui a possibilidade de uma alienação deste ato; precisamente aquilo que o próprio Freire denominou de "ensino bancário." E não é esta a realidade da escola ainda hoje? E como profissionais que atuam na escola, em maior ou menos medida nos deixamos arrastar por esta tendência. 


É bastante comum que o ensino do professor em sala de aula se cristalize em um ato unidirecional e automático. Um ensinar que, sendo sempre o mesmo, não traz nada de aprendizado para quem o ministra. Um ensinar que se enferrujou nos mesmos exemplos, no excesso de exposição e falta de diálogo; na repetição de palavras que encontram cada vez menos ouvidos. 

Culpa do professor? Culpa do aluno? Este tipo de conclusão apenas segue no caminho das dicotomias insolúveis produzidas por nosso modo atual de enxergar o mundo e lidar com ele. Indo mais além, me parece frutífero pensar no ato de ensinar/aprender como uma espécie de circuito.


Em um circuito elétrico, a corrente de eletricidade circula por um caminho delimitado, alimentando diversos componentes e produzindo determinado efeito. Da mesma forma, ensinar e aprender são componentes do circuito do conhecimento. Neste circuito, a "energia" do saber deve circular entre os polos do ensino e da aprendizagem. Quando se ensina autenticamente, se aprende ao ensinar, junto com o educando. Mas ensinar "autenticamente" requer mais do que desempenhar um roteiro de explicações, atividades e provas. Requer uma disposição para interagir com o outro e a capacidade de encontrar novas formas de dizer e mostrar a mesma coisa.


Há, portanto, outros componentes fundamentais desse circuito que nem sempre são levados em conta quando refletimos sobre a educação escolar. Um deles é a criatividade e outro o próprio ser do educador, isto é, a sua subjetividade e vivência pessoal, que nunca estão separadas do seu ato de ensinar, mesmo que permaneçam como currículo oculto.
Podemos pensar no ensinar/aprender, então, como um circuito esboçado pela figura a seguir:






• Ensinar
Ensinando estou também aprendendo. E isso ocorre de várias maneiras: estou compreendendo melhor aquilo que ensino; estou aprendendo a ensinar; aprendendo também a lidar (ou não) com pessoas. Aprendendo, ainda, a observar o que há de universal, para além dos indivíduos: a cultura local; a própria condição humana em sua riqueza e exuberância; o modo como a cognição atua.





 
• Criar
Pessoas são singulares e grupos de pessoas singulares se tornam singulares também: uma turma. Daí que não há método infalível de ensinar, que possa ser replicado tal e qual com o mesmo sucesso em qualquer turma e qualquer ocasião. Vou ensinando autenticamente na medida em que sou capaz de "desmontar" meu conteúdo e remontá-lo com a turma. E para isso a criatividade aparece como um elemento fundamental. Coisas novas geralmente surgem no meu esforço de ir além da explicação cristalizada em minha prática. O improviso é uma ferramenta útil, desde que não venha tapar o buraco da falta de responsabilidade por não se preparar para o trabalho. 
É claro que ninguém cria tudo novo o tempo todo. A atividade do professor em sala de aula tem muito a ver com reproduzir em outras turmas o que vai dando certo e ir deixando de lado aquilo que não funciona tão bem. Mas nesse ato de "colecionar" exemplos, piadas, brincadeiras, imagens e perguntas vou criando coisas novas; me acostumando a pensar, dentro e fora de sala de aula, no que pode dar certo com os alunos. Na medida em que vou ensinando, vou criando um repertório.


 
• Ser
Mas para ensinar bem, preciso estar aberto a sentir o outro e perceber quando ele aprende. Preciso partir da contribuição do educando, mesmo quando ela não se mostra construtiva ou apropriada. Vou estabelecendo assim um diálogo, que muitas vezes custa para deixar de ser um monólogo. Nesse diálogo eu tento montar e desmontar o conteúdo com o qual estou trabalhando. Isso demanda uma disposição, um "estado de espírito". 

Neste montar e desmontar, o conteúdo salta dos livros, mostra-se como algo vivo. Algo com o qual eu lido; mexo e remexo. Nada mais natural, quando estou falando de algo no qual me formei, algo que despertou meu interesse merecendo anos e anos de meu estudo! Algo que anda em minha cabeça a todo momento.Todo professor tem uma paixão por sua área de estudos e vê nela algo fascinante, mesmo que isso esteja soterrado por muito tempo de... docência.


Assim, chegamos a um componente do circuito que muitas vezes se encontra inoperante, prejudicando a passagem da corrente energética do saber. Trata-se do nosso modo de ser em relação ao conhecimento, às pessoas e à vida. É com esse modo de ser que ensinamos primariamente. Nossa postura e atitude constitui aquilo que alguns teóricos chamam de "currículo oculto" e isso conta dentro e fora de sala de aula.


Estou aberto a mudanças e adaptações conforme a virada da maré? Estou habituado a pensar soluções novas e construir indefinidamente meu repertório de boas práticas? Continuo lendo e aprendendo; dedicando uma parte do meu tempo ao meu progresso pessoal?


Essas questões valem tanto para meu trabalho em sala de aula, para o convívio com o outro como para a arte de viver bem. Se depois de uma análise sincera sobre seu dia a dia na escola a resposta a elas for um triplo não, cuidado! Você pode ter virado mais um robô! Máquinas são projetadas para desempenhar um trabalho com eficiência. É isso o que o dia a dia no chão da escola demanda.

Mas quando o professor se torna uma máquina de ensinar, isso significa que o circuito do saber acima descrito está funcionando de forma precária. Um ou mais componentes podem não estar atuando. Quanto isso ocorre, é muito natural que o trabalho seja sempre penoso; uma luta contra o relógio rumo à aposentadoria. 

Mas também é possível restaurar o sistema, trabalhando para desbloquear os diferentes componentes do circuito. Sim, é difícil, dá trabalho e não tem bonificação financeira. Mas o lucro é uma vida mais autêntica, leve e produtiva.

Faça sua escolha!

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Sociedade disciplinar e sociedade de controle

Série Boas práticas- Filosofia na Idade Média 2020b

PASSEIO VIRTUAL PELA EXPOSIÇÃO: DEUSES GREGOS - COLEÇÃO DO MUSEU PERGAMON DE BERLIM - FAAP 2006.