Manifesto contra a imortalidade
Eis um texto produzido para a UA "Cenários futuros" que tem aspectos importantes para pensarmos o uso de avanços científicos.
Manifesto
contra a imortalidade[1]
Eric de Souza Pires[2]
Do aparentemente distante ano
de 2278, escrevo estas palavras com a esperança de que em breve estarei transmitindo
pessoalmente meu alerta a vocês: é preciso frear a absurda ambição de
cientistas e de todos aqueles que, nos ingênuos anos do século XXI, começaram a
tornar possível a imortalidade do corpo físico. Digo isso porque depois de termos
vencido a morte, estamos na iminência de dominar o tempo e, tão logo voltar ao
passado deixe de ser tema de ficção e se torne realidade, pretendo ir até vocês
para convencê-los de que não vale à pena subverter determinadas leis
estabelecidas pela natureza. A imortalidade, dom que o homem sempre almejou
desde a época em que ainda adorávamos os deuses da Antiguidade, transformou-se
na causa da grande catástrofe que atualmente assola a humanidade.
Em primeiro lugar, é bom que
se diga que nem todas as pessoas foram contempladas com a imortalidade: logo se
percebeu a inviabilidade de estendê-la à imensa maioria de miseráveis –
refugiados climáticos que vagam como zumbis de uma região a outra do planeta em
busca de um pouco de água e de comida e que morrem como moscas diariamente –, de
forma que constitui privilégio daqueles que podem dispender enormes somas para
fazer parte da nova elite que domina o mundo: a dos que conquistaram a
imortalidade por meio da engenharia genética. Ao contrário do que se pensava no
começo, os genes que tornam um ser humano imortal não são transmitidos de forma
hereditária, sendo necessário implantá-los no zigoto antes do início do
processo de divisão celular que dará origem ao futuro embrião.
A consequência imediata da
imortalidade foi a perda da fé que, contra todos os prognósticos, não se
limitou aos imortais (que passaram a julgar-se pertencentes a uma espécie
superior), mas se estendeu a praticamente todas as pessoas. À falência
religiosa seguiu-se a derrocada moral: os dominantes lançaram-se a uma escalada
de materialismo e hedonismo nunca vistos, com abusos e excessos de toda ordem, ao
mesmo tempo em que a violência tomava conta das camadas inferiores da sociedade;
as prisões estão abarrotadas e a pena de morte passou a ser adotada em todos as
regiões. O consumo compulsivo e desenfreado levou o meio ambiente ao colapso: o
superaquecimento, a chuva ácida, a desertificação do solo e a poluição das
águas inviabilizaram o cultivo natural de alimentos que, sempre insuficientes,
são agora produzidos em gigantescas estruturas com luz e nutrientes
artificiais; os animais selvagens desapareceram quase todos e pode-se dizer que
não há mais vida nos oceanos; e apesar de enviarmos o lixo para o espaço desde
o século passado, não conseguimos dar vazão ao que ainda produzimos.
A fim de se isolarem da
paisagem desoladora que grassa por todos os lados, os imortais vivem em
cidadelas fortificadas e estanques, isoladas da atmosfera contaminada por meio
de barreiras de íons que permitem a formação de microclimas amenos, e protegidas
dos infelizes que gravitam ao redor por meio de campos eletrostáticos que
impedem sua aproximação. O número de super-humanos mal chega a 20 milhões,
contra quase 10 bilhões de pessoas que precisam lutar diariamente para se
manterem vivas fora das bolhas de proteção. Não preciso dizer que a geopolítica
mundial foi completamente alterada: as fronteiras que antes separavam os países
deixaram de existir; o que temos hoje são cerca de 200 cidadelas que formam uma
espécie de confederação interligada por dutos gráviton-magnéticos pelos quais
viajam bólidos de transporte com velocidade superior a do som, e o restante do
mundo, que procura, na medida do possível, estabelecer critérios mínimos de
organização social.
A despeito das condições
imensamente vantajosas, os imortais também enfrentam problemas bastante
contundentes, a começar pela alta dependência de drogas estimulantes e pelo
vício em realidade virtual – tentativas desesperadas de fugir da depressão que
assola quantidade cada vez maior de super-humanos. E, por incrível que possa
parecer, o suicídio, paradoxo dos que não precisam se preocupar com a morte,
chegou a níveis alarmantes, motivado principalmente pelo enfado de viver sem
perspectiva de grandes mudanças a médio e a longo prazo. Autoridades de saúde
pública instituíram projetos coletivos de reprogramação neurolinguística e de
reengenharia do córtex cerebral, mas sem resultados significativos.
Desde que as tecnologias de
manipulação genética foram definitivamente consolidadas e se tornaram capazes
de conceder imortalidade à nossa espécie, o egoísmo do ser humano tornou-nos
ainda pior do que já éramos: em vez de reduzir, multiplicou por muito as
disparidades que estavam em vias de serem corrigidas e transformou o mundo em
um lugar horrível para se viver. Por isso, de um futuro que não tardará a
chegar para vocês, lanço meu clamoroso apelo: desistam enquanto ainda é tempo e
entendam que a necessidade de morrer é um verdadeiro presente da natureza.
[1] O presente texto foi elaborado
para UA Cenários futuros, orientado
pelo professor Luiz Henrique Milani
Queriquelli, 2018-a.
[2] Estudante do curso de Filosofia -
Bacharelado da Unisul Virtual.
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