Série Boas práticas - UA Textos filosóficos antigos e medievais - 2022b

     Eis mais uma grande produção textual, resultante da avaliação à distância da UA Textos filosóficos antigos e medievais.

Dos movimentos textuais para reflexão sobre as semelhanças entre o maior e o menor nas questões da justiça e da injustiça em A República

           

Por Denise Cristina Vasques Dalloul

 

 

Neste texto, pretendo mostrar brevemente como Platão, em A República, aborda um mesmo tema, a justiça, em momentos diferentes de sua obra, utilizando-se de oposições, perguntas e conectivos. Como proposto para esta atividade, é possível apontar como o autor realiza uma abordagem, interrompe-a ou inverte-a, para depois retomá-la em um outro ponto do texto.

 

Tomei o esquema de Antonio Jorge Soares (1999, p. 110) como uma orientação sem, porém, seguir uma linha diagonal específica mostrada por Soares. Escolhi um trecho do Livro I (351 - 352a), que cuida das características da injustiça na cidade e no indivíduo, e um outro do Livro IV (434c – 436a), que retoma o tema da injustiça e inverte em seu oposto - a justiça. Nos dois trechos selecionados, o autor usa uma mesma linha argumentativa, isto é, parte do quadro maior, a cidade, para o quadro menor, o indivíduo. Cabe ressaltar que, no esquema A. J. Soares (1999), este tema vem citado na coluna do Livro IV.

 

A escolha desses dois momentos se deu pelas seguintes razões: a atualidade do tema, a estética da escrita e, por fim, como acréscimo, sem fugir da proposta, uma imagem relativa ao método dialético no Livro IV (434e4 – 435a1-5).

 

No Livro I, Platão traz, de forma geral, o tema da justiça, conforme destaca A. J. Soares (1999) na respectiva coluna. Sempre por meio do personagem Sócrates, após  diálogo sobre a justiça sem esgotar o assunto, Platão procura um ponto de parada e realiza uma inversão para refletir sobre a injustiça, aproximando os opostos. Nos trechos 351 a 352, a injustiça é tratada a partir de um amplo quadro, a cidade, reduzindo-o para grupos menores, como o exército ou um grupo de ladrões, até chegar na menor unidade, o indivíduo.

 

Abaixo, seguem-se transcrições. Os grifos são meus e procuram ressaltar os conectivos, os elementos de ligação entre um raciocínio e outro, assim como as interrogações. O autor utiliza-se, muitas vezes, do advérbio de tempo então; de referências, por exemplo: exatamente como há pouco; na sequencia da discussão; foi dito em alguma parte; e da conjunção adversativa no entanto para introduzir argumento oposto.

 

Isto então pergunto, exatamente como há pouco, para que examinemos bem na sequência da discussão, de que modo a justiça possa em algum ponto estar relacionada com a injustiça. É que foi dito em alguma parte [344c] que a injustiça era mais poderosa e mais forte que a justiça...

No entanto, ó Trasímaco, de minha parte não desejo examiná-lo de modo assim tão simples, mas da maneira seguinte. Afirmarias que existe uma cidade injusta e que tenta escravizar...? (PLATÃO, A República, I, 350e11 – 351a1-3, b1-3) (Grifei.)

 

E Platão continua a argumentar sobre a injustiça e sua relação com a cidade e qualquer outro tipo de agrupamento:

 

Pensas que uma cidade, um exército, um bando de salteadores, uma corja de ladrões ou qualquer outra corporação, tantos quantos em comum procuram conquistar algo com justiça, poderiam ter sucesso em alguma ação, se praticassem injustiça uns com os outros? (PLATÃO, A República, I, 351c8-11, p. 38)

 

Na sequência, reduz um pouco o quadro ao discorrer sobre a injustiça entre homens livres e escravos. Utiliza-se da conjunção condicional se e o advérbio de tempo então:

 

Se então é esta a função da injustiça, suscitar ódio em qualquer lugar onde for possível, quando ela surge naturalmente entre homens livres e escravos não fará com que se odeiem mutuamente, revoltem-se e que seja incapazes de agir uns com os outros de comum acordo? (PLATÃO, A República, I, 351d9-11 - 351e) (Grifei.)

 

Continuando o raciocínio, o autor usa a conjunção aditiva e e a condicional se, além do advérbio então:

 

E se ela [injustiça] surge naturalmente entre duas pessoas? Não dissentirão, não se odiarão e não serão inimigas entre si e dos justos?” (PLATÃO, A República, I, 351e3-4)

...

Ora, ó admirável amigo, se então a injustiça surgir naturalmente numa única pessoa, acaso ela perderá seu próprio poder, ou o manterá de algum modo inferior? (PLATÃO, A República, I, 351e6-8) (Grifei.)

 

Platão chega, assim, aonde quer chegar, isto é, ao indivíduo, a menor unidade. Como recurso argumentativo, ele retoma toda a ideia exposta acima, desde a cidade até o indivíduo. Utiliza-se do advérbio de tempo então e de perguntas, buscando a confirmação do interlocutor, Não é evidente...?, Não é assim? não é verdade?:

 

Não é evidente então que ela [injustiça] tem tal poder que, onde surja naturalmente, cidade, nação, exército ou outro agrupamento qualquer, em primeiro lugar, ela faz com que ele seja incapaz de pôr-se de acordo consigo mesmo em virtude das dissensões e dos desentendimentos, e ainda, que seja inimiga de si próprio, de tudo quanto se lhe opõe e do justo? Não é assim?

Sem dúvida.

E, existindo ela numa só pessoa, penso eu, produzirá tudo isso que exatamente é de sua natureza produzir: primeiro, ela a tornará incapaz de agir porque a faz revoltar-se e não concordar consigo; depois, a fará inimiga de si própria e dos justos; não é verdade?

Sim.

(PLATÃO, A República, I, 351e10-11 – 352a1-8) (Grifei.)

 

Neste ponto, Platão faz uma reversão para tratar dos homens justos e suas características. Por isso, interrompo aqui, não acompanhando esta trilha tomada pelo autor e volto nossa atenção para o Livro IV.

 

Ainda que formulando um juízo provisório (uso do tempo verbal no futuro do pretérito), Platão une, nos parágrafos 433a – 434a, duas ideias de justiça. Uma, a de que cada classe cumpra sua função e, a outra, a de que justiça seria que cada um pudesse cuidar de seus próprios bens ou negócios: “Assim então a posse do seu próprio bem e o cumprimento de sua própria função poderiam ser consideradas justiças.” (PLATÃO, A República, 433e12 – 434a1) (Grifei.)

 

Em um mesmo movimento, já visto no Livro I, Platão inverte o raciocínio e aproxima os opostos, justiça e injustiça. Observo a retomada do argumento com o uso de sendo então e a afirmação do que seria a injustiça, com o uso do verbo também no tempo futuro do pretérito.

 

Sendo então três as classes, a ingerência e a permuta de funções de umas para as outras resultariam no maior prejuízo para a cidade e com justíssima razão se poderia dizer que seria sobretudo uma maldade.

Perfeitamente.

E não afirmarás que a maior maldade da cidade contra si mesma é a injustiça?

E como não?

Essa então seria a injustiça. Mas digamos mais ou menos o inverso: o cumprimento de suas próprias funções por parte das classes dos comerciantes, dos auxiliares e dos guardiães, quando cada um deles exerce na cidade o que é de sua competência, isso não seria justiça, o contrário daquilo que designamos antes...? (PLATÃO, A República, IV, 434c1-12) (Grifei.)

 

Agora cauteloso, ele recua para depois retomar, utilizando-se da conjunção adversativa mas. Isto é, nega e, depois, propõe uma oposição para chegar aonde ele quer:

 

Não afirmemos ainda isso com toda certeza [recuo ou negação]

... mas se formos também a cada um dos homens em particular e se admitir essa espécie de virtude como sendo no homem justiça, já estaremos de acordo.” (PLATÃO, A República, IV, 434d2-4) [após a negação, frase que introduz nova ideia com adversativa mas, para retornar à ideia anterior e chegar no acordo]

...

No momento, terminemos o exame que tínhamos em mente, de que, se tentássemos comtemplar primeiro a justiça num quadro maior do que os de que ali dispúnhamos, seria mais fácil observar como esta virtude é no indivíduo. (PLATÃO, A República, IV, 434d6-9)

...

Então, o que ali [no quadro maior] nos ficou evidente, relacionemos com um indivíduo, e, se estiver de acordo, estará perfeito. (PLATÃO, A República, IV, 434e2-4) (Grifei.)

 

Platão, na sequência, interroga seu interlocutor, belamente, se maior e menor são a mesma coisa naquilo em que se assemelham. Destaco o uso dos advérbios então e também, e da expressão do mesmo modo, para continuação e confirmação da linha argumentativa.

 

Então, perguntei, se alguém disser que precisamente naquilo em que maior e menor são a mesma coisa, acaso, exatamente nisso em que se diz que são a mesma coisa, eles são diferentes ou semelhantes?

Semelhantes, respondeu.

Então também o homem justo em nada diferirá da cidade justa no que se refere ao próprio caráter da justiça em si, mas será semelhante. (PLATÃO, A República, 435a8-11, 435b1-2) (Grifei.)

...

Do mesmo modo então, ó amigo, é que também, com relação ao indivíduo, sustentaremos que, se ele tiver em sua própria alma essas mesmas espécies de virtude [temperância, coragem e sabedoria], por causa das mesmas qualidades ele será com razão considerado digno dos mesmos nomes com o quais se designa a cidade (PLATÃO, A República, IV, 435b10 – 435c1-4) (Grifei.)

 

E, para finalizar este texto, cumpre apontar que Platão faz, neste momento, uma nova parada, questionando a necessidade de concordar que as virtudes de uma cidade não podem ter outra origem senão nas virtudes dos indivíduos que a compõem:

 

Então, perguntei, não nos será bastante necessário concordar que há precisamente em cada um de nós as mesmas espécies de caracteres e costumes que há na cidade? É que provavelmente elas não estariam presentes na cidade sem ter vindo de outro lugar. (PLATÃO, A República, IV, 435e1-4) (Grifei.)[1]

 

***

 

No trecho que escolhi para demonstrar o movimento argumentativo de Platão, há uma bela passagem sobre o método da dialética que não pude deixar de trazer:

 

Mas, se ficar visível que é algo diferente no indivíduo, voltando novamente à cidade, poremos isso à prova, e, examinando as duas e as repassando muitas vezes entre si, talvez possamos fazer brilhar a justiça como de dois pedaços de madeira em fricção se faz brilhar a luz e, tendo ela se tornado evidente, poderíamos estabelece-la solidamente em nós mesmos. (PLATÃO, A República, IV, 434e4 a 435a1-5)

 

            Esta passagem ilustra, fazendo “brilhar a luz”, o método de que Platão se utiliza em passagens específicas como as trazidas neste texto. Mas, sobretudo, mostra o modo de caminhar e ascender que permeia toda sua vida e obra.

 

Referências bibliográficas

 

MARQUES, Carlos Euclides. Discurso Filosófico I. Palhoça: UnisulVirtual, 2012. 180 p.

 

PLATÃO. A república. Trad., introdução e notas: Eleazar Magalhães Teixeira. São Paulo: MEDIAfashion: Folha de São Paulo, 2021. 472p. (Coleção Folha Os pensadores, V. 1). ISBN 9786587200279.

 

SOARES, Antônio Jorge. Dialética, educação e política: uma releitura de Platão. São Paulo: Cortez, 1999.



[1] São interessantes os exemplos que o autor traz para reforçar seu argumento. Diz ele que as cidades da Trácia e da Cítia são consideradas agressivas, mas isso em razão daqueles que nelas habitam; Atenas é reconhecida como amante da ciência senão em virtude de seus habitantes; assim também a avidez da Fenícia e do Egito seria inexistente se não fosse pelo povo que ali vive. Conclui: “Por conseguinte, a realidade é essa, disse eu, e não é absolutamente difícil de reconhecer.” (PLATÃO, A República, IV, 436a5-6)

 


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