Como ensino filosofia? # 28 - Críticas à educação escolar / parte II (sobre o filme Educação Proibida)




  A compreensão de que a educação escolar se encontra em crise pode se dar em níveis bem diferentes e está condicionada à própria ideia que temos do que venha a ser “educação” e “desenvolvimento”. Em um nível mais raso, a crise na educação tem a ver especificamente com condições materiais: escolas sucateadas, professores mal preparados, falta de recursos, livros e materiais pedagógicos, tecnologias, etc., etc. Esse geralmente é o nível de compreensão dos discursos políticos durante as campanhas, que associam o sucesso da educação a mais recursos e investimentos. Nesta perspectiva um investimento massivo em recursos para a educação, nos moldes como ela se encontra, seria o suficiente para resolver o problema (embora essa media costume ficar apenas como promessa de campanha mesmo).

   Em um nível intermediário, já se pode perceber que e educação escolar padece de um problema “humano” mais complexo: professores mal remunerados que precisam estender sua carga horária ao máximo e não podem se dar ao luxo de seguir estudando e aprimorando suas aulas; um sistema disciplinar que funcionava bem em tempos passados, mas que se mostra cada vez mais ineficiente à medida em que os tempos mudam e as famílias não fornecem os mesmo parâmetros de respeito à autoridade; baixa interação da escola com as famílias; desmotivação de professores e outros profissionais da educação; difusão da violência e das drogas no ambiente escolar; mandos e desmandos das instâncias superiores à escola (gerências de ensino, secretarias de educação), que variam ao sabor das transformações políticas no país. Esse nível de compreensão tende a ser compartilhado por aqueles que de fato integram a comunidade escolar e vivem de perto esta rotina. Nessa perspectiva o problema da escola é também político e social na medida em que diferentes elementos para além do fazer diário na sala de aula se encontram em jogo; como a valorização do professor, a estabilidade das famílias, políticas públicas e outros.

   Por fim, em um nível mais profundo é possível constatar problemas mais abissais envolvendo a escola e sua posição na sociedade: uma incoerência radical entre o que se espera proporcionar às crianças e jovens e o que realmente se proporciona; uma percepção muito limitada da diferença entre a intenção de desenvolvimento humano sustentada pelos educadores e a efetiva modulação da criança e do jovem para a participação no mundo do desenvolvimento material e econômico (o mundo do trabalho); uma postura pendular (e um tanto esquizofrênica) que oscila a todo momento entre a consciência da ineficácia dos processos de aprendizagem tradicionais vigentes e a ação disciplinadora e rigorosa para a manutenção destes mesmo processos no ambiente escolar; a assunção irrefletida de concepções epistemológicas estreitas (em outras palavras, uma noção bastante vaga de como se aprende). Esse nível de compreensão só pode ser alcançado mantendo-se um pé no universo da reflexão filosófica e da pesquisa acadêmica em educação, e outro no chão da própria escola, dia após dia. Nessa perspectiva a crise da educação escolar permanece como um contínuo e complexo enigma a ser solucionado, por que não se limita à escola, mas se estende à condição crítica da sociedade industrial de consumo e à própria condição humana na pós-modernidade.

  É importante ter em vista que estes três níveis de compreensão acerca dos problemas da escola não são autoexcludentes. Pelo contrário, eles se somam e se complementam revelando variadas faces da mesma realidade. Mas diante de tantos problemas e limitações, como a escola ainda permanece em pé? Para responder a esta pergunta é preciso fazer uma reflexão sobre o efetivo papel que a escola ocupa em nossa sociedade contemporânea, levando em conta seu passado histórico. Este é o ponto central do vídeo de hoje, que segue em frente com a análise do filme Educação proibida.

  O fato é que a educação escolar desempenha o papel fundamental de moldar as mentes e corpos das gerações mais jovens ao formato de sociedade que aí está. Não estou aqui reproduzindo, tal e qual, a tese que vê a escola como um aparelho ideológico do Estado (Althusser), cujo único objetivo seria consolidar a hegemonia cultural de uma classe dominante. Talvez tenha sido assim em outros momentos da História, mas nos dias de hoje a televisão e a internet já fazem esse serviço muito bem. Estou falando de um nível mais sutil e abrangente: a escola em seu modus operandi se direciona à um condicionamento dos corpos e mentes para certos elementos chave da sociedade industrial de consumo, tais como:

- a resistência ao trabalho confinado a um ambiente restrito (as 4 hora por dia em uma sala de aula se tornarão 8 em um escritório, balcão de comércio, etc.).

- a familiarização com hierarquias no ambiente de trabalho (o professor, em sua autoridade se converterá no patrão, supervisor ou gerente).

- o condicionamento ao trabalho diário e com hora marcada.

- o hábito de controle da espontaneidade (“tem hora para brincar e hora para estudar”).

- a conformação à burocracia.

- o sacrifício da vontade imediata em nome de um futuro mais promissor.

- a competição e classificação meritocrática do indivíduo.

- as férias como recompensa por algo que não se queria fazer, mas se fez.

E a lista poderia seguir bem mais adiante com uma série de elementos da “vida de adulto” que enfraquecem a autenticidade da existência, mas são indispensáveis para se encaixar ao mundo tal como se encontra. E aqui entra um elemento importante que tentei expor no vídeo: Não se trata de preestabelecer um juízo de valor negativo aos tópicos acima, apontando a escola como a culpada pelas dores do mundo. O fato de a escola ensinar estas coisas é extremamente ambivalente. Em certo sentido, é isso mesmo que ela deve fazer para preparar a juventude para a realidade, já configurada que a espera. Não fazê-lo seria uma irresponsabilidade para com tantos jovens e suas famílias. Por outro lado, e ao mesmo tempo, ao fazer isso a escola ajuda a perpetuar um tipo de sociedade com a qual muitos de nós não estamos satisfeitos.

   Assim, se é certo que a escola serve mais ao desenvolvimento do sistema do que ao desenvolvimento do indivíduo, o fato é que a vida em nossa sociedade nos faz desenvolver muito mais o sistema (através do trabalho assalariado e do consumo) do que a nós mesmos, no sentido da consciência e da vida autêntica. Se estamos satisfeitos com isso, então talvez a escola deva permanecer como está e apenas ser aprimorada em seus elementos materiais (o nível mais raso de percepção da crise). Mas se acreditamos que a própria sociedade está doente e precisa mudar desde suas estrutura, então de fato precisamos de uma outra educação escolar.

   Em resumo, talvez seja acertado afirmar que a escola teve um papel fundamental na formatação da sociedade industrial de consumo, mas hoje se encontra tão desestruturada quanto a sociedade pós-moderna, vivendo um conflito de valores e visões de mundo.

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