Da série Bons trabalhos - Estética e História da Arte
Negro Drama
Felipe de Souza Silva[1]
A organização
societal brasileira, malgrado ser formalmente democrática, foi historicamente
arquitetada para atender a uma dupla exploração: a externa (dos “de fora” sobre
os “de dentro”) e a interna (dos da elite “de cima” sobre os da massa “de
baixo”). Passível de ser endossada por homens como Florestan Fernandes, essa
análise não foi produzida nos gabinetes de alguma academia, mas é o retrato de
um Brasil cantado que se deixa encontrar nas músicas do grupo de rap nacional
Racionais MC’s, cujo álbum Sobrevivendo no Inferno passou inclusive a
ser cobrado em vestibulares, como o da UNICAMP.
Apesar das
assimetrias econômicas e sociais brasileiras, seu fator político de acomodação
é muitas vezes mascarado por sistemas simbólicos – dentre eles o musical –
comprometidos com a manutenção do status quo, funcionando como instâncias
de legitimação ideológica em vez de espaços abertos de emancipação. Esse tipo
de “compromisso” parece não fazer parte da agenda dos Racionais MC’s, que
fizeram da arte musical do gueto uma forma de dar voz ao marginalizado, ousando
fazer poesia a partir da história de milhares de pessoas que sentem na carne a
dor e a beleza de ser um típico “negro drama” (nome de uma das inúmeras
composições).
Antes dessa
aproximação crítica entre política e arte – que terá por ponte o rap nacional
–, vale apontar, de um modo geral, que foi a partir da modernidade que se
passou a constituir uma gradativa libertação do espaço artístico em relação às
instâncias de poder (político e religioso) que até então o instrumentalizavam
para a consecução de seus fins. É dizer, até então o artístico não havia
despontado como campo intrassocial autônomo, com princípios autorreferentes de
estruturação, apesar da permeabilidade à influência de outros níveis formativos
do todo social. Esse aspecto também reflete do seguinte modo:
O modo como se estabelece quem possui e quem não
possui poder para tomar decisões importantes no mundo da arte está enraizado ao
processo que ficou conhecido como ‘autonomização social do campo artístico’ (KAMINSKI,
2006, p. 4).
Contudo, no
curso mesmo da modernidade flagram-se momentos de tentativa de reabsorção da
arte pela política, como se denota, por exemplo, quando da apropriação do
estilo neoclássico como expressão simbólica do Império Napoleônico, como ventilado
por Lucésia Pereira (2011). Entrementes, a forma mais ostensiva desse tipo de
“sequestro”, apesar da pouca visibilidade histórica até agora a isso afiançada,
se deu no século passado, como retratado no documentário Arquitetura da
Destruição, em que o regime nazista leva a efeito um projeto estratégico de
politização da estética. A partir de uma leitura estética reconduzível genealogicamente
à figura do Líder, recria-se “o belo” artístico para fins de afirmação racial
(adoção de um ideal de beleza como criteriologia do que é são: mental, moral e
espiritualmente) e “o feio” para fins higiênicos (como demonstração de
patologia, debilidade mental e corrupção humana).
Por outro
turno, o espaço da arte que havia experimentado no alvorecer da modernidade expressiva
valorização e relativa autonomia frente à política e religião (apesar das
“quedas”, como suprarreferido), graças também ao mecenato, com o hipertrofia da
lógica capitalista, dentro da formatação de Estado burguês, tende a ser
reprocessado em seu significado e valor como mera coisa de mercado.
Diante desse
quadro, nota-se que a relação entre arte e política é dinâmica, assim como são
plásticos os tipos de compromissos que esses campos podem manter entre si e com
outros campos (como o econômico) nas diferentes organizações societais e dentro
de uma mesma estrutura ao longo do tempo. As sociedades modernas são complexas
e mantêm nexos endógenos de integração que não eliminam, ao contrário
pressupõem, a coexistência de diferentes campos (como o artístico, o político e
o econômico) na formação do todo social, a despeito de poderem ser mais
horizontal ou verticalmente articulados na composição de um dado sistema
cultural. Dessa interdependência e permeabilidade já se permitiria assentir
que:
O sucesso de determinada obra entre a comunidade
artística e demais interessados nela não depende apenas da competência do
autor, muito menos do valor isolado da obra em si (KAMINSKI, 2006, p. 3).
E ainda:
Enquanto os artistas, os teóricos e historiadores
persistem em exaltar uma relativa autonomia da arte conquistada, às vezes, pelo
hermetismo de sua linguagem que restringe sua compreensão, as práticas do
mercado e da comunicação de massas fomentam a dependência dos bens artísticos
de processos extra-estéticos, englobando nesses os diversos agentes daquela
esfera que possuem autoridade para traçar os limites do que é e do que não é
verdadeiramente arte (KAMINSKI, 2006, p. 9).
Feito esse
pequeno traço sobre a relativa autonomia da arte conquistada historicamente
frente ao político (desde o início da modernidade, sujeito a recaídas) e sua
potencial assimilação mais recente pelo econômico, volta-se o olhar para a
musicalidade do grupo Racionais MC’s no esquadro da organização societal brasileira.
Diante do tão
grande mostruário de composições do referido grupo (desde 1988, mais de uma
centena), nota-se que a partir do lugar de fala do excluído – que não fala
“gíria”, mas um dialeto de resistência –, a música de protesto dos Racionais
MC’s joga luz sobre o sistema de opressão social vigente no Brasil, diante de
sua formação histórica e fisionomia política e econômica. Com efeito, o “país
do samba, caipirinha e futebol” ainda hoje se vê marcado pelo alijamento de
grande parte da população dos bens economicamente produzidos (abismo entre
pobres e ricos), pelo preconceito racial (remanescente da escravidão em face de
um resistente eurocentrismo) e pelo genocídio social de pessoas em situação de
vulnerabilidade (como os jovens negros da periferia).
Ciente desse diagnóstico,
as letras de música do grupo não incentivam a violência, mas visam a despertar
em cada “negro drama”, ao passo que denuncia a iniquidade estrutural do sistema,
o senso de responsabilização individual e o chamado para o desafio de se manter
vivo e de cabeça erguida, essa seria a verdadeira hombridade de quem ousa
contrariar a lógica perversa de uma arquitetura social desumanizante. Nesse mesmo
diapasão, o grupo de rap formado por jovens negros e pardos da periferia de São
Paulo – Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay –, não lança purpurina sobre a
falta de educação, saúde e lazer digno (música Vamos Passear no Parque),
a morte prematura de muitos meninos que têm a vida ceifada pelo tráfico e pelas
ilusões da vida bandida (Fórmula Mágica da Paz), o triste cotidiano da
existência na cadeia (Diário de um Detento) etc.
Alinhados com
essa missão emancipatória, os membros da banda não aceitaram shows ou convites
em locais que pudessem representar a cooptação de sua música e figura artísticas
por interesses meramente lucrativos ou midiáticos. Negaram, assim,
peremptoriamente a participação em programa de palco da TV Globo, mas foram
mais de uma vez à TV Cultura, que em certa feita entrevistou no programa Roda
Vida o cantor Pedro Paulo Soares Pereira, vulgo Mano Brown. Apesar – ou por
causa? – dessa recusa aos grandes conchavos, o grupo conquistou gradativamente
seu lugar no espaço da arte musical brasileira, o que não desqualifica, antes
ratifica, a análise de que:
O espaço da produção cultural ocupa uma posição
dominada dentro do campo do poder, ao tempo em que possui seus próprios
mecanismos de consagração e exclusão e os seus dispositivos posicionais
estruturados, constituindo-se em lugar de disputas simbólicas e de relevantes
especificidades artísticas (KAMINSKI, 2006, p. 5).
Em face dessa
sonora contestação a um modo de orquestração política denegatória de uma vida
digna a todos, as canções entoadas pelos Rancionais MC’s não carregam em si uma
“arquitetura da destruição”, ao revés, está semeada do espírito de
desconstrução de um tipo específico de arquitetura da destruição toda excludente,
notadamente desta arquitetura político-nacional brasileira que ainda deixa de
fora os que não fazem parte de sua estética político-mercadológica, dentro dos
compromissos ideológicos com um ideal espúrio de belo que exclui, marginaliza e
mata.
REFERÊNCIAS
LUCÉIA, Pereira. História da
Arte. 1. Ed. Palhoça: Unisul Virtual, 2011.
KAMINSKI, Rosane. Notas sobre a
legitimação da arte. R. cient./FAP, Curitiba, v.1, 2006.
COHEN, Peter (diretor). Arquitetura da destruição. Suécia, 1992. (Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=gDqGT4xepjQ
Acesso em 01/06/201).
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