Da série de bons textos produzidos nas UAs (agora de Textos filosóficos antigos e medievais).



A REPÚBLICA DE PLATÃO: UM SUCINTO COMENTÁRIO ACERCA DA ARGUMENTAÇÃO INICIAL DO LIVRO X DA REPÚBLICA

Por Denis Netto Duque da Silva

Tomando como base o Livro X da República de Platão[1], o presente escrito se ateve um recorte do texto que pinçou trechos abrangidos pelo intervalo de páginas 321 a 324. Para compreensão deste excerto, o presente trabalho adotou uma estratégia historicista de leitura, buscando embasar seus comentários com o seguinte trajeto: partindo do contexto histórico que conduziu Platão a se tornar filósofo, passando pela crítica feita por este filósofo à poesia, tanto no sentido de discordância, quanto no sentido de necessidade de revisão desse elemento do sistema educacional grego, dado que apresentava como um entrave à realização da justiça; por fim é feita uma análise sobre a repercussão que a crítica platônica à poesia teve na filosofia da posteridade, mais especificamente, na filosofia de Aristóteles.

Antes de cinzelar quaisquer considerações específicas sobre o trecho da obra A República que se pretende estudar, convém mencionar que a redação das obras platônicas e a própria existência de Platão enquanto pensador não foi algo, digamos, “solto”, descontextualizado, ao contrário, o autor e suas obras estão inseridos em um contexto histórico. Atenas – pólis do filósofo em questão –, de 490 a 470 a.C., depois de unir esforços com Esparta para enfrentar e derrotar os persas, usou a frota naval que havia construído (e aproveitando-se de sua localização geográfica favorável ao contado com o oriente, potência cultural de então) para implementar sua relação com o oriente (DURANT, 2000); tal contato transformou Atenas em um movimentado porto, o que lhe dava contato com gentes de várias culturas. Assim, num somatório de, como vai dizer Durant (2000), relação com outras culturas (o que gera questionamento) e acúmulo de riqueza (o que proporciona o ócio necessário à reflexão), tem-se alguns elementos[2] que, unidos a outros, ensejarão o surgimento e o desenvolvimento da Filosofia em solo helênico.

Pois bem, acrescido ao referido ambiente propício para o filosofar, tem-se o fato de Platão ter sido “criado com conforto e, talvez, em meio à riqueza” (DURANT, 2000, p. 39), além de ter conhecido e se encantado com a figura e o fazer filosófico de Sócrates; o resultado de tudo isso é Platão virando, definitivamente, um “amigo do saber”. Dessa forma, embora a obra da qual se analisa um trecho não seja das primeiras escritas por Platão[3], eis o contexto (ainda que sucinto) que levou o referido autor a adentrar no mundo da Filosofia e adotar o método dialético (herdado de seu mestre Sócrates).

Tratando agora propriamente do excerto da República a ser analisado, tem-se que nele o mestre da Academia está a criticar a difusão da poesia no âmbito da Callipolis[4]. Se for buscado o auxílio do magistério de Aranha e Martins (2009, p. 31) ver-se-á que “na vida dos gregos, as epopeias [um dos tipos da poesia] desempenharam um papel pedagógico significativo”, onde, “desde cedo as crianças decoravam as passagens desses poemas” (ARANHA; MARTINS, 2009, p. 31). Dessa forma, quando Platão critica a poesia, pode-se dizer que está a criticar, com vistas a uma reformulação do próprio sistema educacional ateniense; entendido isso e sabendo-se que Platão, na República, busca, no limite, definir o que seja a justiça e o homem justo, é lícito concluir que a crítica e a consequente pretensão de reformulação da educação ateniense têm como objetivo a construção de um novo homem: o homem justo (e, consequentemente, a cidade justa).

Mas como Platão leva essa crítica a efeito? Ele vai dizer que poesia é uma imitação, que ela é feita, tal qual um pintor faz ao realizar seu trabalho, ou seja, se inspira não na essência, na ideia (alcançável apenas pela dialética) daquilo que pinta, mas se inspira apenas nas coisas que vê (PLATÃO, 2000). Dessa maneira, pode-se mais claramente entender a influência causada por Sócrates na Filosofia de Platão, porque se for tomado em consideração que o método de Platão – a dialética – foi desenvolvido por influência do método de seu mestre (a maiêutica), bem como o que o filósofo da Academia entendia como objetivo da dialética, a saber, “fazer nossa compreensão passar do sensível ao inteligível, da aparência à essência, da multiplicidade à unidade” (SELL, 2011, p. 117), fica patente que a crítica à poesia tem como pano de fundo uma retomada, por Platão, da tese socrática onde “a experiência sensível não é capaz de nos fornecer um conhecimento verdadeiro” (SELL, 2011, p. 117).

Cabe ainda mencionar um aspecto da repercussão que a crítica platônica à poesia teve. Como dito, Platão tencionava a desqualificação, na Callipolis, da poesia como fonte de educação, de conhecimento[5], porque, como dito, ela se limitava a imitar a aparência dos objetos, não se atendo à sua forma (sua essência, que é eterna e imutável). Pois bem, quanto a esta crítica da poesia, não houve concórdia por parte de um célebre aluno do filósofo da Academia, a saber, Aristóteles, o qual rechaçou esse ataque platônico à poesia mediante sua “teoria da catarse” (ACHCAR, 1991), onde, para o estagirita, a poesia seria responsável por purgar as más paixões (ACHCAR, 1991), e justamente por isso ela deveria ser mantida na educação, até porque, diferentemente de Platão, que entendia que, tanto as boas, quanto más paixões deveriam ser suprimidas, Aristóteles entendia que a excelência ética seria, não a eliminação das paixões, mas seu controle (ACHCAR, 1991), daí a compreensão do filósofo do Liceu pela mantença da poesia na educação grega.

Dito isto, conquanto não se tenha esgotado os comentários possíveis acerca Livro X da República (mesmo dentro dos limites do intervalo de páginas analisadas), procurou-se expor o contexto histórico que levou Platão adotar a Filosofia, bem como especulações acerca dos motivos de Platão criticar a poesia, além da exposição de como essa crítica reverberou em filósofos da posteridade. Dessa forma, espera-se dar – ainda que de maneira diminuta – uma contribuição para o debate acerca de Platão e sua obra A República.
                             

REFERÊNCIAS:

ACHCAR, Francisco. Platão contra a poesia. 1991. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/52155/56204>. Acesso em: 26 ago. 2019.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. 4. ed. São Paulo: Moderna, 2009.

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 12. ed. São Paulo: Editora Ática, 2000.

DURANT, Will. A história da filosofia (coleção os pensadores). Trad. Luiz Carlos do Nascimento Silva. São Paulo: Nova Cultural, 2000.

MARQUES, Carlos Euclides. Discurso filosófico I: livro didático. Palhoça: UnisulVirtual, 2012.

PLATÃO. A república (coleção os pensadores). Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2000.

SELL, Sergio. História da filosofia I: livro didático. 1. ed. rev. Palhoça: UnisulVirtual, 2011.



[1] Tradução de Enrico Corvisieri; coleção Os Pensadores.
[2] É dito “alguns dos elementos”, porque, como bem ressalta Chauí (2000), o nascimento da Filosofia se deu por uma soma de fatores, como a língua grega que permitia se falar do abstrato, a democracia, que incentivava a necessidade de debate, bem como a construção de um discurso bem estruturado, dentre outras coisas.
[3] Já que A República é um diálogo “classificado como uma obra intermediária da maturidade” (MARQUES, 2012, p. 42).
[4] A “cidade bela”, a cidade criada como um exercício racional ao longo da obra República a fim de alcançar o objetivo último de explicar o que seria a justiça e o homem justo.
[5] Ao menos como fonte de conhecimento verdadeiro.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Série Boas práticas- Filosofia na Idade Média 2020b

Sociedade disciplinar e sociedade de controle

PASSEIO VIRTUAL PELA EXPOSIÇÃO: DEUSES GREGOS - COLEÇÃO DO MUSEU PERGAMON DE BERLIM - FAAP 2006.