Série Bons escritos - 2020 a Estética e História da Arte.



DO ÓBVIO AO MISTERIOSO: A FALA DE UMA OBRA DE ARTE SOB O OLHAR DE HEIDEGGER
 Helena Francisca de Oliveira

          Este trabalho tem como objetivo realizar reflexões sobre o ensaio de autoria de Renata Tavares e Samon Noyama, intitulado  “Heidegger e Os sapatos do camponês, de Van Gogh”, bem como apresentar, a partir dessa leitura, reflexão filosófica relacionada à obra de arte mencionada e outra, citada no decorrer do texto.
          Interessou-me especialmente esse ensaio acerca da interpretação feita por Martin Heidegger (1889-1976) de uma pintura de Vincent Van Gogh (1853-1890) que retrata um par de sapatos, porque, se a princípio poderia parecer algo de certa forma desinteressante, a visão do filósofo sobre ela revela sua dimensão mais profunda, somente alcançada por alguma parte de nosso ser humano que transcende a lógica conceitual que costuma orientar nossa vida cotidiana.
          Referem Tavares e Noyama (2019, p. 222) que Heidegger não pretende oferecer nenhum argumento lógico-racional, embora reconheça não se tratar de uma opinião subjetiva, mas considera que sua interpretação se encontra em algum espaço entre o objetivo e o subjetivo, não se tratando, portanto, de nenhuma das duas, mas de uma terceira[,] onde o que vale, no final das contas, é o “relacionar-se com a obra de arte, deixando que ela fale”.
          Tendo em vista que o filósofo não aponta a obra sobre a qual está tratando nesse momento, não diz nada sobre o artista, tampouco se refere a datas, sabendo-se apenas que se trata de uma pintura de Vincent Van Gogh[,] cujo tema é sapatos, os autores do ensaio escolhem, então, enfocar o quadro Um par de sapatos, de 1886, que se encontra no museu Van Gogh, em Amsterdã.

          Heidegger não pretende descrever a obra, mas falar sobre a experiência de estar diante dela, travando uma espécie de diálogo no qual as palavras não dão conta de traduzir as sensações, os sentimentos e os sentidos apreendidos num nível para além do racional. Nesse momento único e indescritível, todo um mundo se descortina em alguma parte do ser observador: muito mais do que cores e formas, os sapatos adquirem uma aura de vitalidade, eles contam a história de alguém que os calça no dia a dia, alguém que caminha por, sabe-se lá, quais caminhos, que trabalha, que sorri e que chora em suas andanças pela vida.
          Entretanto, não falam os sapatos apenas sobre o seu portador (um camponês, uma camponesa ou o próprio artista), mas sobre eles mesmos, não mais como simples objetos inanimados, mas como o ser essencial por trás do utensílio, tornando evidente o fato de não expressar, na habitualidade rotineira, seu verdadeiro ser que pode ser apreendido, neste caso, como em tantos outros, através da arte.
          A linguagem da arte pertence a uma dimensão que ultrapassa a da razão e, nesse sentido, ao se referir ao próprio conceito de arte, aponta Pereira (2011, p. 24) que “Alguns estudiosos [...] afirmam que a arte sequer pode ser compreendida pelo discurso racional, pois as palavras reduzem seu significado, que somente pode ser apreendido pelos sentidos”.
          Ao interpretar a obra de Van Gogh, Heidegger nos fala, a partir dessa dimensão, acerca de temas essenciais como “A solidão, a aspereza do vento, a necessidade, a vida e a morte. [...] Esse mundo ‘aparece’ apenas pelo sapato”. (TAVARES e NOYAMA, 2019, p. 224, grifo dos autores). Dessa forma, resta-nos reconhecer a limitação da nossa interpretação usual, pois, como indicam os autores, não percebe as coisas como seres, mas as mantêm no seu estado de objetos, já que essa interpretação se dá apenas no nível racional, baseada em conceitos e verdades fechadas.
          Ora, a arte se apresenta como caminho para a transcendência do nível da verdade tradicional da filosofia para o da verdade enquanto revelação ou aparecimento − caráter da verdade desde os primórdio da cultura grega −, “Admitindo, que para além dos raciocínios já construídos em uma série de conceitos filosóficos, a própria realidade emerge” (TAVARES e NOYAMA, 2019, p. 225).
          Tais reflexões remetem ainda a alguns dos conceitos desenvolvidos por Carl Gustav Jung (1875-1961), em sua Psicologia Analítica ou Junguiana, na qual situa a arte no campo psíquico do inconsciente coletivo, dimensão profunda onde se abrigam as memórias das experiências da humanidade em todos os tempos e culturas, desde as eras priomordiais: é através da arte, bem como das religiões, dos sonhos, dos mitos, das fantasias, que conteúdos arquetípicos ali situados emergem para a consciência através de imagens simbólicas (GRINBERG, 2003, p. 68, 134).
          Sendo a linguagem da arte naturalmente simbólica, sua comunicação exige o concurso de dimensão psíquica capaz de apreendê-la para, somente então, ser traduzida pela consciência, ou seja, ser atualizada e fazer sentido na dimensão racional do ego. Contudo, o símbolo é fugidio, escapa-nos quando tentamos racionalizá-lo, tanto quanto as percepções que, vivenciadas diante da obra de arte, não podem ser traduzidas em palavras, pois estas tendem a afungentá-las: “Tendo vida, eles – os símbolos − transmitem intuições. Quando seu conteúdo é apreendido pelo pensamento lógico, eles se esvaziam e morrem” (BARONE, 2014, p.32, grifo meu).
          Retornemos, pois, ao início desse texto − quando apontamos para o fato de que Heidegger não pretendeu oferecer qualquer argumento lógico-racional, mas a interpretação da obra a partir de um relacionamento direto com ela −, tendo em mente o caráter da arte a partir dos pressupostos referidos acima. Afirma Jung (2011, p. 104, grifos do autor) que o homem, enquanto artista “É, no mais alto sentido, ‘homem’, e homem coletivo, portador e plasmador da alma inconsciente e ativa da humanidade”, e o processo criativo seria a ativação do arquétipo, desenvolvido ao ponto de tomar uma forma simbólica através da obra de arte. Nesse sentido,

Este é o segredo da ação da arte. O processo criativo consiste (até onde nos é dado segui-lo) numa ativação inconsciente do arquétipo e numa elaboração e formalização na obra acabada. De certo modo a formação da imagem primordial é uma transcrição para a linguagem do presente pelo artista, dando novamente a cada um a possibilidade de encontrar o acesso às fontes mais profundas da vida que, de outro modo, lhe seria negado (JUNG, 2011, p.83).

          Seguindo por essa linha de pensamento, se nos dispuséssemos a interpretar outra obra, como “Natureza morta com prato de cebolas”, de 1889, também de Van Gogh, é provável que nos surpreendêssemos bastante diante das inúmeras possibilidades que o relacionamento com essa pintura nos descortinaria para além das talentosas pinceladas e do brilho das cores: a realidade do artista, seus afazeres, seus momentos de descanso, suas motivações e paixões, seus pensamentos e sentimentos, como também o ser por detrás das coisas sobre a mesa, a história do prato e das cebolas, da vela acesa, do livro, da garrafa de bebida, do cachimbo e do tabaco, da própria mesa e dos vários outros objetos ali retratados. De toda forma, não nos interessaria tanto os objetos aparentes, mas as vivências do autor da obra no momento de sua execução e as das próprias coisas manifestadas através dos pincéis e das tintas, apreensões que ultrapassariam os limites do pensamento lógico e poderiam nos conectar a nossa própria dimensão profunda, onde somos todos um em nossa humanidade.

          Obviamente que o pensamento exposto nesse trabalho não pretende responder ao questionamento a respeito do que seja a arte, pois, conforme afirmado por Pereira (2011, p. 23), “Como na estética, não existe um consenso relativo ao que venha a ser a arte”, mas tão somente convidar a uma reflexão acerca da possibilidade aqui apontada: uma trilha a ser percorrida por aqueles que pretendem ir além do aparente.
          Encerramos nossas reflexões com uma frase do escritor, poeta, filósofo e artista plástico libanês Khalil Gibran (1883-1931) que, acreditamos, traduz bastante bem o pensamento aqui exposto: “A arte é um passo do que é óbvio e familiar na direção do que é misterioso e oculto”.

REFERÊNCIAS 

BARONE, Luciana Paula Castilho. Inconsciente, Subjetividade e Processo de Criação. Pitágoras 500. Campinas, v. 4, n. 1, p. 20-38, jan./jun. 2014. Disponível em: < https://doi.org/10.20396/pita.v4i1.8634711 > . Acesso em: 23 jun. 2020.

GRINBERG, Luiz Paulo. JUNG: o homem criativo. São Paulo: FTD, 2003.

JUNG, Carl Gustav. O espírito na arte e na ciência. Tradução de Maria de Moraes Barros. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

PEREIRA, Lucésia. História da Arte: livro didático; design instrucional Gabriele Greggersen. 1. ed. rev. Palhoça: UnisulVirtual, 2011.

TAVARES, Renata; NOYAMA, Samon. Heidegger e Os sapatos do camponês, de Van Gogh. In: ______. Reflexões sobre Arte e Filosofia.  Curitiba: Intersaberes, 2019. cap. 6,  p. 221-227.

Comentários

  1. Essa Helena Francisca é minha irmã, mó orgulho dessa moça kkkkk. Parabéns Lena, amei seu texto e pra variar, aprendi um pouco mais com vc. Bjs

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