Série - Bons escritos - 2020-a - Reflexão sobre o Homem na Filosofia
As
escolhas ao longo da vida: a construção de si mesmo
Edvaldo Nazareno
Carvalho Faria
Introdução
Nada como assistir a um bom filme.
Principalmente se a obra cinematográfica provocar reação espontânea no
espectador, de tal forma que o leve a especular a propósito da arte de viver a
vida. Qual seria a melhor forma de tocar esse projeto? Ponha-se no lugar do
personagem e diga o que faria diferente dele, dadas as circunstâncias. Mas é
preciso, ao fazer esse exercício, considerar alguns parâmetros, para não
cometer impropriedades: o lugar em que o personagem vive, os amigos com os
quais convive, os lugares que ele freqüenta, o convívio com o irmão e a forma
de criação imposta pelos pais.
Após assistir ao filme Nada é para sempre (EUA, 1992),
ver-se-á que os pontos referidos acima estarão todos contemplados. Porque,
veja: trata-se de uma família composta de pai, mãe e dois filhos. Residem em
uma cidade interiorana do estado de Montana (EUA), “... situado na região
montanhosa do noroeste do país, junto à fronteira com o Canadá” (BARSA, 2004,
p. 167). A mãe cuida full time da
casa. O pai é um pastor presbiteriano muito dedicado na criação dos dois filhos,
Norman e Paul. Igualmente lhes ensina a serem disciplinados, cumpridores dos
seus deveres, éticos e fraternos. Nos momentos de entretenimento, o pai lhes
instrui a serem exímios pescadores de truta no rio que passa bem próximo da
casa onde moram. Ao longo da história se verá que o mais novo dos filhos terá
um impulso quase telúrico para a celebração. Ele permanecerá naquela pequena
cidade durante toda a sua vida, convivendo com os amigos de sempre, divertindo-se
no bar da cidade onde terá complicações com dívidas de jogo e sua atividade se
resumirá a uma função de repórter em um jornal local, além de se tornar um extraordinário
pescador de trutas. Em virtude de não honrar apostas no jogo de baralho, Paul sofrerá
consequências que abalarão toda a família. Ao contrário, o outro irmão estudará
fora, terá uma formação acadêmica e ao final será convidado a lecionar em uma
importante universidade; casar-se-á com uma moça da cidade natal, constituirá
família e levará uma vida tranquila, retilínea e sem complicações. O mais
comovente dessa história é que ela é baseada em fatos reais.
A tarefa aqui proposta é utilizar o
enredo do filme referido acima para conferir algumas premissas estudadas por
pensadores ao longo da história da filosofia. Sócrates investigava em seus
diálogos com os interessados se havia a possibilidade de transmissão da
virtude. Será que é possível isso, ensinar a virtude a alguém? Outra
especulação a ser feita: Por que duas pessoas, recebendo tratamento idêntico em
sua educação, cuidados e estímulos similares, produzem resultados tão díspares?
Talvez o existencialismo proposto pelo filósofo Jean-Paul Sartre ofereça uma
luz a essa questão. É o que tentaremos examinar a seguir.
A escolha do caminho
O filósofo Sócrates era incansável
no exame de toda sorte de questões. Tudo para ele era motivo de intrincada
investigação. A virtude era uma delas. Ele se perguntava: a virtude pode ser
ensinada? Ela pode ser transmitida a outrem? No diálogo Protágoras, de Platão, ver-se-á uma contenda entre o sofista
Protágoras e o filósofo Sócrates. O tema dessa disputa é precisamente a
virtude. O sofista tentará provar ao filósofo que a virtude é passível de ser
ensinada. Ressalta-se que, para Protágoras: “O homem é a medida de todas as
coisas” (MARCONDES, 2007, p. 43). Além dessa ideia central – o humanismo –, ele pregava igualmente o relativismo. Para ele, o que importava
era o fenômeno, apenas, para se dar conta do mundo real, “... sem apelo a
nenhum elemento externo ou transcendente”, consoante assinala Marcondes (2007,
p. 43). Indagado por Sócrates o que um jovem aprenderia em suas aulas,
Protágoras informa o que diria a esse educando:
Jovem,
o resultado de frequentares minhas aulas é o seguinte: a partir do primeiro dia
já voltarás para casa como um homem melhor. O mesmo acontecerá no dia seguinte.
A cada dia te aprimorarás mais e mais. (PLATÃO, 2007, p. 262).
Sócrates, então, relata a
Protágoras que Péricles concedeu aos filhos, Párolo e Xantipo, uma excepcional
educação, entretanto, naquilo que ele próprio revelava-se realmente sábio não
os instruiu nem confiou essa tarefa a outro instrutor. Uma ocasião, reforça
Sócrates, Péricles tentou ensinar as virtudes a um jovem chamado Clínias. Seis
meses após essa árdua iniciativa, ele desistiu, em face de constatação da
impossibilidade de êxito nessa empreitada. Sócrates declara a Protágoras o
seguinte:
E eu
poderia citar para ti muitíssimos outros homens que, embora virtuosos eles
mesmos, jamais obtiveram êxito na tentativa de tornar outros indivíduos
melhores, fossem estes pertencentes a suas próprias famílias, ou pertencentes a
outras. Portanto, Protágoras, por conta desses fatos, sou da opinião de que não
é possível ensinar a virtude. (PLATÃO,
2007, p. 265).
Depreende-se, ao final do colóquio
entre o sofista e o filósofo, que só se ensina o que é conhecimento. Caso a
virtude seja conhecimento, ela é passível de ser transmitida; do contrário,
não.
Se voltarmos ao filme, veremos que
o pai dos meninos, repleto de virtude, fez como Péricles, na narrativa de
Sócrates: investiu-se de intencionalidade e tentou transmitir esse atributo aos
dois rebentos. O mais novo deles aprendeu a pescar, de forma exímia, inclusive
ultrapassando o pai nessa arte. Tornou-se muito comunicativo também. Sabia
alegrar um ambiente, contar histórias engraçadas, divertir a todos ao redor.
Afinal, seu pai era um homem do púlpito; a função exigia-lhe a comunicação
exata a fim de que a mensagem bíblica chegasse perfeita ao coração dos fieis.
Mas foi só, o filho mais novo não seguiu as virtudes ensinadas pelo pai. O
outro filho aprendeu também a técnica da pescaria, embora sem proeminência. Agora,
nas demais atividades, ele foi exemplar. Os pais tinham orgulho deliberado
dele. Um bom filho. O mais novo sempre causava preocupação.
A perspectiva existencialista no
exame desse filme nos traz inevitavelmente a figura robusta de Jean-Paul Sartre
(1905-80). Em suas pesquisas advindas das influências de pensadores como
Sócrates, Kierkegaard e Heidegger, esse notável francês deixará indelével nas
páginas da história da filosofia frases como essas: “O homem é o ser cuja
existência precede a essência” e “Nós somos o que fazemos do que fazem de nós”,
conforme aponta Marcondes (2007, pp. 263-4).
Sartre não aceita que o homem se
deixe desintegrar-se. Melhor, a inação diante das circunstâncias, para ele, é
uma atitude de má-fé. O autor de O ser e
o nada defende que o homem não pode deixar que a vida o leve, como quer um
conhecido cidadão da música popular brasileira. É preciso que ele tenha as
rédeas nas mãos e não se exima de escolher as coisas que ele queira fazer. Sartre
(2014, p. 25) está convencido de que “o homem nada é além do que ele se faz”. E
mais, “Se, com efeito, a existência precede a essência... o homem é livre, o
homem é liberdade... o homem está condenado a ser livre” (SARTRE, 2014, p. 33).
Uma síntese suficientemente
esclarecedora da filosofia do existencialismo concebida por Sartre é feita por
Nise & Marques (2018, pp. 121-2, grifo do original), como se vê a seguir:
Sartre
está especialmente preocupado com a vida assim como ela é, e não com os
princípios abstratos que os homens inventaram para defini-la. Ao homem não
resta outra saída do que exercer sua liberdade e aprimorar-se num mundo que não
cessa de se transformar. ...Por isso, é necessário que o homem se encarregue de seu próprio destino, que leve uma “vida
autêntica”, compreendendo as forças que atuam para controlar e subjugar a
liberdade humana.
No início do filme, Norman, o filho
mais velho e já velho, relembra o pai lhe perguntando: “Norman, você gosta de
escrever histórias?”. Ele respondeu que sim. O pai então completou: “Um dia,
quando estiver pronto, você poderá contar a história da nossa família. Aí,
então, você vai entender o que aconteceu e por quê”. Veja, o filme é uma
adaptação do livro escrito pelo filho mais velho, Norman Maclean, quando sua
família já havia partido. O nome original do livro é A river runs through it (Um rio passa por ele, numa tradução
livre); o filme americano recebeu o mesmo título do livro; no Brasil, no
entanto, batizaram-no com o nome de Nada
é para sempre. Quando o livro é escrito, todos já haviam morrido: sua
esposa, os pais e o irmão mais novo. Como o pai lhe dissera, agora ele estava
pronto para entender o que aconteceu com a família e a razão desse desfecho. Sartre
pensa igualmente. Quando o círculo se fecha, pode-se compreender o que
aconteceu no picadeiro. Todos os elementos estão postos em cena, nada mais a
acrescentar, o show acabou. O
filósofo francês apresenta uma justificativa para essa conclusão:
Você
não é outra coisa senão sua vida. ...O que queremos dizer é que um homem não é
outra coisa senão uma série de empreendimentos, a soma, a organização, o
conjunto das relações que constituem essas empreitadas (SARTRE, 2014, p. 43).
A ponderação paterna, como síntese
possível
Como fora mencionado anteriormente,
Sócrates (PLATÃO, 2007, p. 265) opinava que a virtude não pode ser ensinada.
Norman lembra-se do último sermão
proferido pelo pai, pouco antes de o pregador morrer. Ele dissera:
Cada
um de nós que está aqui hoje, em um momento de nossas vidas vai olhar para um
amado que está necessitado e fazer a mesma pergunta: “Quero ajudar, Senhor, mas
o que ele precisa, se é que precisa?”. Mas raramente podemos ajudar os mais
próximos a nós. Não sabemos o que podemos dar e, com frequência, o que temos
para dar não é desejado. São aqueles com quem vivemos e achamos conhecer que
nos iludem. Mas ainda podemos amá-los. Podemos amar de forma completa, sem entender
completamente.
Há um momento no filme em que os
dois meninos falam sobre o futuro. O que cada um deles desejaria ser, quando
crescesse. Paul, o mais novo, afirma que queria se transformar em um pescador
profissional. No filme, ao final, Norman exterioriza suas memórias, as
lembranças pujantes de seus entes queridos (do irmão, dos pais, da esposa
Jessie), das pessoas com as quais manteve relação em sua juventude e,
principalmente do rio, que foi protagonista sempre presente e que atravessou a
vida de todos, durante todo o tempo. Norman chega a confidenciar o assombro que
o rio lhe causa até hoje:
Agora,
todos que amei e não entendia na minha juventude estão mortos. Até Jessie. Mas
eu ainda recorro a eles. É claro que estou velho para ser um bom pescador.
Agora, normalmente, pesco sozinho, mesmo que alguns amigos achem que não
deveria. Mas, quando estou sozinho, à meia luz do desfiladeiro, toda a
existência parece desvanecer em um único ser, e fico só, com minha alma, com
minhas lembranças, com os sons do rio Big Blackfoot e o ritmo de quatro tempos
e com a esperança de que um peixe vá aparecer. Eventualmente todas as coisas se
fundem em uma coisa só e um rio a atravessa. O rio foi cortado pela maior
enchente da História e corre sobre as pedras do porão do tempo. Em algumas
pedras, há pingos de chuva eternos. Sob as pedras estão as palavras. E algumas
palavras são deles. Eu sou assombrado pelas águas.
Para Norman, isto é o que lhe
resta: fazer o inventário da trajetória que cada um dos seus entes queridos
descreveu ao longo da vida; emoldurar o produto desse exercício mental em uma
fotografia apenas e guardá-la para sempre no arquivo vivo de suas memórias. O
poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-87) também fizera exercício semelhante, conquanto
tenha sido em referência à sua cidade natal, de onde ele se distanciara há
tempos, para ir morar no Rio de Janeiro. E a síntese de suas lembranças é
devastadora (ANDRADE, 2008, p. 12): “Itabira é apenas um retrato na parede./
Mas como dói!”.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. 1. ed. Rio de Janeiro: MEDIAfashion, 2008.
(Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros; v. 4). ISBN: 978-85-99896-29-7.
BARSA: Grande
Enciclopédia Barsa. Micropédia, vol. II. 3. ed. São Paulo: Barsa Planeta
Internacional Ltda., 2004. ISBN: 85-7518-185-8.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a
Wittgenstein. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. ISBN:
978-85-7110-405-1.
NADA é para sempre. Direção: Robert Redford. Produção: Robert Redford; Patrick Markey.
Roteiro: Richard Friedenberg. Trilha sonora: Mark Isham. Intérpretes: Craig
Sheffer; Brad Pitt; Tom Skerritt; Brenda Blethyn; Emily Lloyd. EUA: Columbia
Pictures, 1992. 1 DVD (123 min.). Ficha técnica disponível em <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-5362/creditos/>.
Acesso em 3 de jun. de 2020.
NESI, Maria Juliani; MARQUES, Carlos Euclides. Reflexão sobre o homem na filosofia:
livro didático. Design instrucional: Isabel Zoldan da Veiga Rambo. 1. ed.
atual. Palhoça: UnisulVirtual, 2018. ISBN: 978-85-506-0171-7.
PLATÃO. Diálogos
I: Teeteto (ou Do conhecimento), Sofista (ou Do ser), Protágoras (ou
Sofistas). Tradução, textos complementares e notas: Edson Bini. Bauru, SP:
EDIPRO, 2007. (Clássicos Edipro). ISBN: 978-85-7283-574-9.
SARTRE,
Jean-Paul. O existencialismo é um
humanismo. Apresentação e notas: Arlette Elkaïm-Sartre;
tradução: João Batista Kreuch. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. (Coleção
Textos Filosóficos). ISBN: 978-85-326-4012-3.
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