Série Boas Práticas - Estética e História da Arte

 

Da sétima arte: uma reflexão sartreana sobre Blade Runner[1]

 

 

Thiago Kistenmacher Vieira

 

 

Introdução

 

Conforme o enunciado da atividade, poder-se-ia abordar mais do que apenas uma obra para discutir a condição humana a partir do pensamento de algum filósofo abordado na presente disciplina. Para fins de introdução, citemos, por exemplo, que, ao filme Kids (1994), caberia uma abordagem assente no pensamento de Rousseau relativamente à crítica sobre a sociedade, dada a complexa, caótica e decadente vivência daqueles jovens em meio ao crime e às drogas; mas também freudiana, considerando a importância que o filme dá à libido; e, além desta, esse filme autorizaria uma discussão heideggeriana, vista a possibilidade de divisarmos, ali, uma vida inautêntica e um total afastamento do Ser; o filme Laranja Mecânica (1971), por seu turno, poderia contar com uma análise hobbesiana no que se refere à necessidade do Estado para controlar o ímpeto agressivo dos sujeitos; O Homem Bicentenário (1999), e A.I. – Inteligência Artificial (2001), além de uma crítica rousseauniana, permite um tratamento marxista, uma vez que ambos os personagens principais são criados por empresas privadas que visam o lucro; ou mesmo pensando nos subprodutos do positivismo comteano, que tinha a ciência como ponto culminante do desenvolvimento racional humano. O filme A Onda (2008), sugere, além de outras, uma avaliação aristotélica por conta do pensamento do filósofo grego acerca do animal político que somos como sujeitos e, claro, como a vontade de potência nietzschiana poderia ser ali encontrada quando apressadamente interpretada. Para finalizar a introdução, pensamos que todas as obras suportariam uma apreciação fundamentada nas concepções de Cassirer correspondentes ao uso dos símbolos. Contudo, nossa preocupação aqui é com o filme Blade Runner e como essa obra cinematográfica pode sugerir um exame sartreano.

 

Blade Runner: considerações sartreanas

 

Afora outras oportunidades de analisar o filme Blade Runner (1982), temos, aqui, uma obra que, a partir dos androides sistematicamente perseguidos por Rick Deckard (Harrison Ford), nos inspira a uma análise sartreana. Interessante notar que, a despeito do temor que os androides causam, aos poucos, no desenrolar da trama, eles, diferentemente do que percebemos no início do filme, demonstram traços considerados como sendo de natureza humana. Afinal, quando das cenas que começam a concluir a obra, vê-se Roy Batty (Rutger Hauer), lamentando-se sobre o cadáver de Pris (Daryl Hannah), baleada por Rick. O androide também salva Rick, no momento em que este caía do edifício no qual pendurava-se – algo que não pode ser classificado como uma atitude de um androide frio e insensível. Rick, então, é jogado sobre a marquise do prédio e encontra-se diante do androide que o resgatou.

Isso tudo pode nos causar certa estranheza, principalmente se nos perguntarmos, a princípio, por que a obra dirigida por Ridley Scott pode ser lida, em alguma medida, à luz do pensamento sartreano. Ora, o androide, após salvar Rick, apanha um pombo branco – sinal de paz, símbolo apenas humano, como apontaria Cassirer? – e coloca-se em frente ao caçador de androides, de modo que esse caçador começa a ser confrontado consigo mesmo. Isso porque: qual a razão de ter sido salvo, e não morto pelo androide? O que ele deseja? Nesse instante, o androide fala sobre suas experiências, lembranças, e, por fim, assevera que tudo isso será perdido no tempo, como, por exemplo, “lágrimas na chuva” (BLADE RUNNER, 1982). Além do tom poético sobre o qual aborda a existência, o androide faz com que Rick reconheça nele um “outro”. Quer dizer, se pensarmos em Sartre, esse olhar do androide diante de seu carrasco faz com que o próprio carrasco vivencie um conflito consigo mesmo. Em outros termos: os livres atos do caçador são ali julgados, vistos pelo outro – no caso, pelo perseguido. Há, ali, um reconhecimento de si por parte do caçador. Enfim, o inferno do caçador, no instante em que ele descobre, a partir de Roy, o que estava realmente fazendo, é o outro. É o androide que o colocou frente a frente com sua própria ignorância acerca dos seus parentes “proto-humanos”.

Disso decorre outra questão que erguemos com vistas ao pensamento sartreano: “A existência precede a essência” (SARTRE, 1987, p.24). Todavia, a existência do androide também precede sua essência? Pensamos ser razoável responder positivamente à questão. Isso porque a existência desses seres, antes de serem colocados no mundo, eram apenas objetivas. Nesse caso, eles apenas estão no mundo, mas ainda não são. Vejamos, nas palavras de Sartre: “Ele só será depois, e ele será tal como ele se fizer. Assim, não existe natureza humana, já que não há Deus para concebê-la.” Roy foi apenas depois, mesmo que sua humanidade tenha sido fruto de um problema programático. Mas, assim como “O homem é apenas não somente tal como ele se concebe, mas tal como ele se quer, e como ele se concebe após existir, como ele se quer depois dessa vontade de existir – o homem é apenas aquilo que ele faz de si mesmo” (SARTRE, 1987, p. 24 apud NESI, 2018, p. 120). 

O androide, dessa forma, tornou-se homem com o que fez de si mesmo; se quis depois que descobriu a existência; concebeu-se do modo como o vemos na cena final após existir. Então, o não essencialismo de Sartre pode muito bem ser aplicado nesse caso. Pois não é com o conhecimento do mundo, daqueles que o rodeiam, da natureza, em suma, de tudo o que o cerca, que o androide se torna pouco a pouco quase que inteiramente humano? Sua existência não possuía tal essência. Sua existência, produzida por uma empresa de alta tecnologia, não previa, nem imputou ao androide essa essência que só pode ser alcançada, criada, por conta de sua vivência, contexto e experiências próprias, ainda que isso tenha sido causado por conta de um problema celular ocorrido em seu corpo projetado pela supracitada empresa. Em que pese sua criação ter sido pensada por algum projetista, essa essência não foi pensada aprioristicamente.

Sendo assim, o androide Roy e seu comportamento talvez estejam de acordo com o que Sartre escreveu, quando afirmou, em Saint Genêt, que “O importante não é aquilo que fizeram de nós, mas o que nós mesmos fazemos com aquilo que fizeram de nós (SARTRE, 1952, p. 55, tradução nossa). Trazemos a frase acima a fim de pensar que o androide, a despeito de ter sido fabricado para determinada função, foi feito. Porém, o que importa, em conclusão, não é aquilo que foi feito dele, mas o que ele fez com aquilo que fizeram dele.

No que concerne à questão do próprio viver, o androide, antes mesmo de resgatar Rick, pergunta: “Viver com medo é uma experiência e tanto, não é? É o mesmo que ser escravo” (BLADE RUNNER, 1982). Aqui vemos já uma questão antropológico-filosófica suscitada por Roy, isto é, uma pergunta retórica ligada diretamente ao sentido, à condição de uma existência. Essa pergunta, a propósito, faz-nos pensar em outro problema: o da liberdade. Roy, o androide, devido ao desenvolvimento de sua humanidade, ao não essencialismo de sua existência, está, também como apontaria Sartre, condenado a ser livre (SARTRE, 1987, p. 9). Pois, ao não mais depender de programações ditadas pela indústria que o fabricou, ele está colocado no mundo e precisa responder por seus atos.

 

Considerações finais

 

Em curto espaço, pudemos notar que, se o cinema fomenta profusas discussões com a Filosofia, diversos pensamentos filosóficos podem ser extraídos da sétima arte. Optamos por abordar apenas uma obra. Contudo, como fizemos questão de observar na introdução do presente texto, abundam as oportunidades de discussão com outras obras e outros filósofos e correntes de pensamento.

Sabemos que os androides presentes no filme Blade Runner não são inteiramente humanos. Há de se fazer tal ressalva. Não obstante, devido à trama, àquilo que se nos apresenta, no referido filme diversas ponderações sartreanas são encontradas. Se Roy existe, e essa sua essência, como se viu, foi sendo criada, e não dada de antemão por seus fabricantes. Percebendo que existe, tornou-se livre, rebelou-se. E Rick, o caçador de androides, pode ser confrontado com sua própria humanidade, com seus pensamentos, seus atos, apenas porque Roy tornou-se praticamente humano. Ou seja, Roy, o androide, o “proto-humano”, enfim, o outro, se tornou, por fim, o “inferno” do protagonista.

 

 

Referências:

 

BLADE RUNNER. Ridley Scott. EUA: Warner Bros. Pictures, 1982.

 

Marques, Carlos Euclides e NESI, Maria Juliani. Reflexão sobre o homem na filosofia : livro didático / Maria Juliani Nesi, Carlos Euclides Marques ; design instrucional Isabel Zoldan da Veiga Rambo. – 1. ed. atual. – Palhoça : UnisulVirtual, 2018.

 

SARTRE, Jean-Paul. Saint Genêt : comédien et martyr. Gallimard, 1952.

 

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo; A imaginação; A questão de método. [Os pensadores]. São Paulo: Nova Cultural, 1987.



[1] O uso de “ser humano”, no lugar de apenas “homem”, dá-se em virtude de não circunscrever o a discussão à figura masculina, mas, de levar em consideração o papel da mulher na sociedade.

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