Série Boas práticas - Reflexão sobre o Homem na Filosofia
O ser-aí no deserto
Por: Luiz Gustavo Duarte
O
filme “O céu que nos protege” (The Sheltering Sky, no original), lançado
em 1990 e dirigido por Bernardo Bertolucci, retrata a viagem de um casal
estadunidense, Kit (Debra Winger) e Port (John Malkovich) para a Argélia,
África, na esperança de ressignificar sua própria relação através de uma
excursão pelo Saara. O casal é jovem, e vai acompanhado de outro jovem chamado
Tunner (Campbell Scott), que está na viagem como quase um “intruso”, já que ele
está presente por uma espécie de autoconvite para tal. Eles compartilham uma
falta que a técnica do mundo não estava conseguindo preencher. É dessa
necessidade que surge a viagem, que ao longo do filme é explorada de modo mais
minucioso, seja nas dificuldades do relacionamento do casal, ou nas traições de
Kit e Port. Tal a movimentação pelo inóspito e diferente, percorre em uma
tentativa de se lançarem num território não preenchido com toda esta técnica
presente nos locais de onde eles vêm, um verdadeiro espaço liso que é cursado
vislumbrando se encontrarem a si mesmos e resolverem seus problemas originados
anteriormente em outro lugar.
A
história se passa em 1947, e logo no início o que se percebe é um choque e
descompasso na própria chegada dos turistas norte-americanos (ou viajantes,
como eles mesmos debatem no início) naquele território, isto pois, mesmo eles
vivendo em países considerados centrais para o capitalismo numa época de
impulsos econômicos, que no caso das personagens principais parecem estar
expressos em seu modo de vida, algo falta para tais viajantes.
O
que decorre de tal viagem é que o sentido que eles buscam obter não é algo que
já está intrinsecamente adormecido no ser humano e que possa ser desperto. É
algo que vai se construindo conforme àquele território não demarcado, em meio a
areia e oásis, mergulhados na imensidão de um mundo que se reflete para eles
mesmos, de maneira que aos poucos eles vão se reconstruindo na história, em um
verdadeiro movimento de voltarem a se perceber como seres humanos enquanto os
próprios seres que eram até então vão deixando de existir.
Neste
movimento, é possível nos remetermos a própria interpretação Heidegger sobre
este ser que está num ininterrupto processo de descoberta e construção sobre si
mesmo. É o que o filósofo conceitua como ser-aí (Dasein), ou
seja, não há como diluirmos o homem em uma racionalização científica ou
técnica, visto que a própria existência humana precisa ser compreendida como um
constante desvelamento do Ser, de maneira que o homem está no mundo, e na sua
condição de estar nesse mundo é suas vivências irão decorrer e seus sentidos para
o próprio viver vão se construindo (HEIDEGGER, 2005). O filme demonstra isso,
pois em sua narrativa o ser humano não aparece como algo pronto, as personagens
estão em busca de sua própria descoberta, mesmo sem estarem procurando algo
específico para descobrir em si mesmos, e dada sua condição humana no tempo,
eles vão produzindo sentidos para sua própria existência em meio àquele novo
território de acordo com seus próprios caminhos no deserto.
Acompanhando
a história do casal, por exemplo, vemos que tanto Port quanto Kit, acabam
praticando traições, o homem como uma prostituta e a mulher com o amigo do
casal, Tunner, de modo que a presença deste entre o casal vai se tornando
insustentável. O que decorre daí é que conforme avançam sem destino, mas também
sem saber se conectarem aos pontos do caminho por onde seguem, a relação deles
vai desgastando ao ponto de Tunner ser separado do grupo e seguir seu caminho
sozinho. Contudo, a ausência do terceiro ponto deste triangulo não faz emergir
a busca de sentido que ambos do casal buscavam, o mal-estar entre eles continua
presente.
Enquanto
vagam por vilarejos e desertos, Port é acometido por uma doença grave, febre
tifoide, de maneira o casal é jogado em um ambiente no qual precisam lutar para
sobreviver em meio aquele território, inóspito para eles, mas comum para os
habitantes locais. Decorre que Port não sobrevive, ele morre, mas não em um
processo passivo. O que segue nesse processo do morrer é que ele mergulha em
sua própria condição humana, seja nas suas reflexões enquanto Kit está ausente
buscando ajuda, ou mesmo na ressignificação das práticas locais, pois ao estar
doente e febril enquanto habitantes locais tocam tambores e instrumentos locais
de modo rítmico, um importante processo acontece com Port, ele já não enxerga
mais tal prática como algo externo e “exótico”, como um estrangeiro que está
olhando de fora, mas sim permitindo-se sentir e vivenciar aquilo, de modo que
ele se integra a tais práticas quando percebe a necessidade do tambor rítmico
para diminuição de seu sofrimento. Não é apenas um homem se apegando a uma
busca miraculosa ou algo do gênero, mas um próprio ser-aí que demonstra
um próprio desvelamento do ser em um momento de temor, de modo que seu ser-aí
em constante descobrimento se demonstra mais conectado a seu entorno e busca
viver tal momento sob um novo modo.
Acontece
que, com a morte de Port, junto com a própria desolação que atinge Kit, ela
também passa a se ressignificar enquanto humana no deserto. Kit encontra um
grupo de viajantes em sua caravana de camelos e passa a acompanhá-los, e com o
tempo torna-se mulher de um dos membros de tal grupo, ou melhor, uma das
mulheres. Ela, em meio aquele ambiente novo, acaba se relacionando com tal
homem e segue para sua casa onde passa a viver e se relacionar buscando uma
inserção dentro das próprias práticas locais, mesmo que ainda seja perceptível
um certo distanciamento ali.
Esta
vivência de kit é interrompida pelo momento que ela é “resgatada” pela
embaixada norte-americana. A cena de resgate é de profundo significado, pois
ela se encontra no hospital, com os desenhos tradicionais locais em seu corpo,
enquanto a profissional da embaixada a encara como alguém que acaba de
encontrar um animal que foi resgatado, ou seja, aqui se presencia a mudança da
própria condição humana de Kit ao longo de seu caminho. Na medida como se
reconhece como parte daquele território onde passa a viver e não somente
sobreviver, praticando sua cultura e ritos, ela deixa seu status de pessoa
racional ocidental, e mesmo que ainda possua tais características (ser branca,
estadunidense, etc.), só será aceita novamente em sua cultura originária se for,
de certo modo, “resgatada e reabilitada”.
Heidegger
irá afirmar que, quando o homem vive no mundo de tal forma que é, de certo
modo, alienado na coletividade da cidade acelerada das técnicas, ele está
vivendo uma vida inautêntica, pois não está conseguindo entrar em contato com o
ser-aí. Contudo, se o homem segue em uma busca na sua própria afirmação
do ser, na procura por um desvelamento do Ser, ele está vivendo de modo
autêntico (WERLE, 2003). É este modo autêntico de vida que parece
que as personagens vão descobrindo ao longo da história, na medida em que
percebem que não podem mais agarrar-se às técnicas, aos fluxos da cidade
grande, e que o contato que eles têm com o Ser está ali diante deles naquele
território árido e por vezes desolador. O refletir sobre a própria a existência
se torna inevitável, e a autenticidade se afirma, mesmo que os leve a
jornadas inesperadas de contato com angústia, termo e morte, também os aproxima
do ser-aí.
Nessa
história, além dos pontos que não são possíveis aprofundar em tal análise, o
que foi possível presenciar é uma busca de sentido, uma verdadeira máxima
socrática para o ser humano, “Conhece-te a ti mesmo”, em que os personagens
buscam algo que os faria reconectar com eles mesmos, ainda que não estivessem
totalmente conscientes disto. Em tal caminho que acompanhamos no filme, o que
se apresenta é uma própria ruptura entre modos de compreender as culturas, pois
se antes as personagens são caracterizadas como os ocidentais, técnicos e
advindos de preceitos religiosos judaico-cristãos, quando se deparam com outros
povos, não como turistas, mas sim como viajantes e depois como viventes
daqueles locais, ocorre uma mudança nos próprios modos de viver o mundo.
Há
de se recuperar o que Heidegger traz sobre a existência em sua obra Ser e
Tempo, ele reflete: “Que significa ‘existência’ em Ser e Tempo? A
palavra designa um modo de ser e, sem dúvida, do ser daquele ente que está
aberto para a abertura do ser, na qual se situa, enquanto se sustenta” (HEIDEGGER,
1983, p. 82). Assim, a existência e suas angústias vistas no filme, só
são possíveis pela abertura que as personagens se permitem ao ser,
necessariamente há a transformação no estar-aí no mundo, eles passam a
considerar as culturas africanas, e no caso de Kit, se integra a elas. É uma
experiência em que presenciamos o próprio contato de Kit e Port com o
desvelamento do ser-aí, e nesse processo não há como saber o que irá
decorrer, tal imprevisibilidade também é explorada, apesar disso, o que se pode
considerar é que apesar dos desfechos a obra é uma profunda viagem, não somente
à África, mas ao interior do próprio Dasein.
REFERÊNCIAS
HEIDEGGER M. Que
é metafísica? In: HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos.
Tradução, introduções e notas: Ernildo Stein. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural,
p. 25-63. (Col. Os Pensadores). 1983.
HEIDEGGER M. Ser e tempo. Tradução de Mareia Sá
Cavalcante Schuback. 15. ed. São Paulo:
ed. Vozes, 2005.
WERLE MA. A
angústia, o nada e a morte em Heidegger. Trans/Form/Ação, São Paulo,
26(1): 97-113, 2003.
THE SHELTERING SKY. Diretor: Bernardo Bertolucci.
Produtor: Jeremy Thomas. Reino Unido – Itália. DVD. 1990.
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