Como ensino filosofia? # 18 - Ensinar para todos é uma utopia


Ensinar para todos é uma utopia




  As reflexões feitas nesta série partem diretamente do chão da sala de aula, do fazer diário da educação junto aos jovens do ensino médio. Assim, o princípio geral de que “ensinar para todos é uma utopia”, talvez pareça de início uma posição conformista, ou mesmo exclusivista, sugerindo a imagem daquele professor que só dá atenção aos seus alunos mais interessados e capazes. Mas não é isso que pretendo afirmar.

   A noção de que muito raramente se consegue a atenção plena de uma turma de ensino médio advém de uma posição realista e me ajuda justamente a não comprometer tanto a dinâmica das minhas aulas, como a maioria dos professores costuma fazer ao intercalar a exposição do conteúdo com chamadas de atenção e broncas recorrentes. Ao manter uma “expectativa de audiência” um pouco mais baixa, eu vou seguindo com minha exposição ou comentários e permito que os alunos se incluam cada um a seu tempo no ritmo da aula. As vezes isso ocorre naturalmente, as vezes outros alunos acabam por pedir silêncio àqueles que não se sintonizaram ainda com a aula. As vezes a atenção da maioria da turma acaba contagiando os demais. E as vezes nada disso funciona.

  Isso não significa que eu não chame a atenção de meus alunos para pedir silêncio; em certos momentos é impossível prosseguir sem recorrer a estas "chamadas". Mas percebi que a proposta de ter um pouco mais de tolerância com alguma falta de atenção e minimizar as interrupções e broncas coletivas pode ajudar bastante a manter um clima mais leve e dinâmico. A médio prazo, vou conquistando a audiência pelo respeito e consideração mútuas. Aliás, será que aquilo que o professor tem a dizer é sempre mais importante? Em um grupo, isso não reflete uma situação de poder extremamente desigual, onde toda palavra do professor deve ser ouvida imediatamente e toda palavra ou reação do aluno pode ficar para depois? Estabelecendo relações de poder um pouco mais horizontais, a tendência é que o próprio coletivo de alunos em uma sala passe a se autoregular em relação às conversas paralelas e à participação. E aqueles alunos que realmente “não querem nada com nada”, por vezes vão aos poucos alterando seu comportamento, seja para acompanhar mais a turma, seja por afeição à minha postura mais aberta e menos repreensiva. (Mas as vezes não tem jeito mesmo; alguns permanecem não querendo nada com nada!)

  Mas há uma questão que não deve ser ignorada (e que talvez você esteja se fazendo ao ler este texto): esta proposta de seguir dando aula para quem está ouvindo não causa um ensino fragmentado? Ou seja, sem a coerção para que toda a turma preste atenção, não se estaria favorecendo uma apreensão assimétrica do conteúdo ensinado, onde alguns alunos absorvem todo o conteúdo e alguns apenas uma parte? Sem dúvida, há essa possibilidade. Mas cabe perguntar, de volta, se o mesmo não acontece na aulas em geral. Em outras palavras, é realmente possível forçar um indivíduo a prestar atenção e aprender algo? Há garantias de que, em uma sala coagida a permanecer em silêncio durante as exposições do professor, todos os alunos terão a mesma assimilação do conteúdo?

  Isso remete àquilo que me referi no vídeo: a pressuposição ilusória de uma mensagem unívoca emitida pelo professor e apreendida pela turma. Por certo, falamos a mesma língua e temos relativo sucesso em comunicar cotidianamente nossas ideias de forma objetiva. Mas se nos aprofundamos um pouco no campo da teoria do conhecimento e nas reflexões sobre a linguagem poderemos perceber as estreitas, mas abissais lacunas que envolvem o tema do sentido e da compreensão do que pensamos e dizemos. O que quero dizer é que a pressuposição de que o outro compreende exatamente aquilo que estou pensando e que tento expressar através de proposições é algo já bastante questionado em diversas áreas do conhecimento.

   Mencionei no vídeo o filósofo L. Wittgenstein que concluiu, na segunda fase de seu pensamento, que nossa linguagem é uma forma de ação que assume variadas funções. Não há uma “essência da linguagem” que consista numa lista de palavras com significados unívocos que todos compartilham. Nosso modo de lidar com as palavras assume diferentes feições ao dar uma ordem, descrever um objeto, emitir um juízo de valor, etc. Estes diferentes “jogos de linguagem” são semelhantes, mas não idênticos e acabam se entrecruzando nas relações linguísticas que vamos estabelecendo. Nas palavras de Searle (2000) ao descrever estas ideias de Wittgenstein:

Não estamos praticando um grande jogo de linguagem, no qual existem padrões universais de racionalidade e onde tudo é inteligível para todo mundo, mas sim uma série de jogos de linguagem menores, cada um com seus próprios padrões internos de inteligibilidade.

   Assim, me parece que o professor tem muito a ganhar ao começar a desconstruir a ideia de que a mensagem que ele emite diante de uma turma de alunos pode ser integralmente “absorvida” por todos como ele mesmo a compreende. Diferentes indivíduos numa audiência tomarão cada conceito em relação ao seu próprio quadro de referências pessoal, o que pode produzir variados sentidos. A chave para vencer este abismo de falibilidade linguística está justamente na conversa, na troca ativa de ideias acerca do conteúdo em questão. À medida em que a exposição de um conteúdo deixa a função de uma narração exclusiva do professor e passar a figurar como diálogo, então é possível ir aparando arestas da compreensão e estabelecendo um núcleo de sentido comum mais apurado. Deste modo, a sequência das aulas sobre determinado conteúdo pode ser vista como a construção conjunta de um universo de sentido em torno de determinada mensagem. Ora, os indivíduos são capazes de se adequar a este universo em construção em diferentes momentos. Por isso mesmo, não vejo a opção de seguir com a aula sem exigir a atenção plena de todos ao mesmo tempo como algo que necessariamente comprometa a compreensão do conteúdo. É possível que diferentes alunos “se liguem” em diferentes momentos da aula a aprendam da mesma forma.

  Por fim, em um sentido mais profundo do tema, cabe a seguinte questão: Como posso determinar que ensinamentos serão mais significativos para a vida de cada um dos indivíduos à minha frente numa sala de aula? E aqui falo não apenas dos conteúdos curriculares, mas do conteúdo integral que vou atualizando na vivência cotidiana com meus alunos. Mesmo com relação às maiores lições de vida que eu possa dar, não tenho nenhuma garantia ou controle do efeito destes ensinamentos em cada um; no momento presente ou no futuro. É neste ponto que o desapego deve entrar em cena e que talvez nós professores devamos nos ver como pequenos instrumentos com uma função indefinida, mas necessária nas vidas de todos aqueles que passam por nossa companhia.

SEARLE, JOHN. Mente, linguagem e sociedade.Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

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