Como ensino filosofia? # 17 - Como ler um texto?


Como ler um texto?

 Este é um artigo aporético.

  Me lembro que quando comecei a pensar seriamente em dar aulas de filosofa, eu me enxergava selecionando trechos de textos filosóficos e lendo com meus alunos. Embora soubesse das dificuldades para fazer com que jovens leiam mais e melhor, e embora ciente das dificuldades específicas que envolvem a leitura filosófica, eu pensava que talvez o segredo estivesse na seleção correta de pequenos trechos e em um trabalho mais atencioso de leitura conjunta. O empenho do professor deveria fazer a diferença. Eu iria então, com paciência, avançando na exposição e compreensão de pequenas partes do texto e esclarecendo ideias que não estavam evidentes aos alunos. Estes por sua vez, gradualmente começariam a compreender o texto em sua inteireza, reconhecer o seu valor enquanto uma “peça do pensamento humano” e, talvez, até admirar a habilidade do autor em conduzir nossa reflexão através de palavras tão bem colocadas… Mas isso foi um sonho que em pouco tempo de experiência concreta em sala de aula rapidamente se desfez.

  A derrocada dessa minha expectativa inicial se deve a dois erros bem comuns cometidos por aqueles que ainda não estiveram na linha de frente de uma sala de aula: 1 – pressupor a atenção plena de uma turma inteira, seja em uma atividade, seja na exposição de um conteúdo. 2 – pressupor um nível de habilidade com a leitura que já inclui a reflexão direta daquilo que se está lendo. Paulo Freire falou muito bem sobre esta habilidade: “… o ato de estudar é assumir uma relação de diálogo com o autor do texto, cuja mediação se encontra nos temas de que ele trata.” (1982, p. 12)

  O vídeo a seguir é um registro feito, em 2016, acerca da carência desta habilidade para a leitura autônoma e compreensão de textos em alunos que estão concluindo o ensino médio na escola pública. A fala é um pouco longa porque analisa um exemplo pontual de leitura, mas vale a pena assistir até o fim.



OBS: Este vídeo é a terceira parte (inédita) de uma reflexão intitulada “crônicas sobre a compreensão” que publiquei aqui no blog da Unisul Virtual há algum tempo. Segue o link para as partes I e II:

https://filosofianaunisul.blogspot.com/2016/04/uma-cronica-sobre-compreensao.html

https://filosofianaunisul.blogspot.com/2017/03/outra-cronica-sobre-compreensao.html


  No mesmo texto citado anteriormente (Considerações em torno do ato de estudar) Freire faz uma crítica que julgo bastante consistente acerca das raízes desta imensa dificuldade de meus alunos para ler e compreender um texto de filosofia:

       Estudar é, realmente um trabalho difícil. Exige de quem o faz uma postura crítica, sistemática. Exige uma disciplina intelectual que não se ganha a não ser praticando-a.

       Isto é, precisamente, o que a “educação bancária” não estimula. Pelo contrário, sua tônica reside fundamentalmente em matar nos educandos a curiosidade, o espírito investigador, a criatividade. Sua “disciplina” é a disciplina para a ingenuidade em face do texto, não para a indispensável criticidade.

       Este procedimento ingênuo ao qual o educando é submetido, ao lado de outros fatores, pode explicar as fugas ao texto, que fazem os estudantes, cuja leitura se torna puramente mecânica, enquanto pela imaginação se deslocam a outras situações. O que se lhes pede, afinal, não é a compreensão do conteúdo, mas sua memorização. Em lugar de ser o texto e sua compreensão, o desafio passa a ser a memorização do mesmo. Se o estudante consegue fazê-lo, terá respondido ao desafio.

   De fato, o que fui percebendo ao longo destes anos de ensino de filosofia na escola pública é que a enorme dificuldade para fazer com que meus alunos leiam e compreendam melhor um texto não é um problema localizado, mas o resultado de anos e anos de um tipo de educação. Posso afirmar com segurança que uma parte considerável dos meus alunos não lê; apenas percorre os textos procurando respostas para uma questão predeterminada.

   Tudo isso para dizer que, até o presente momento, ainda não consegui encontrar uma estratégia que considero satisfatória para promover a leitura em sala de aula. Afinal, como fazer com que toda uma turma, ou a maior parte dela, se dedique efetivamente a ler e tentar entender um texto filosófico? Vejamos alguns métodos frequentemente usados pelos professores.

   I – Entregar o texto e dar um tempo para que os alunos façam a leitura individualmente, tomando, em seguida o conteúdo da leitura como núcleo da exposição oral do professor.

   II - Entregar o texto, dar um tempo para que os alunos façam a leitura individualmente e, em seguida, pedir que façam alguns exercícios de interpretação do texto (presentes no livro ou elaborados pelo próprio professor).

   III – Fazer uma leitura conjunta, pedindo que um aluno leia em voz alta enquanto os demais o acompanham.

   IV - Fazer uma leitura conjunta, a partir da leitura do próprio professor em voz alta, enquanto os demais o acompanham.

   Particularmente, não gosto de utilizar os dois primeiros métodos listado acima. Em geral, o tempo dado para que os alunos leiam o texto sozinhos costuma ser mal aproveitado. Enquanto alguns permanecem dispersos no início da atividade e demoram a “engatar” a atenção na leitura, aqueles que iniciaram prontamente terminam a leitura primeiro e começam a conversar, atrapalhando os que ainda não terminaram. (Ficar pedindo silêncio à classe só atrapalha mais ainda quem está lendo.) E quanto a utilizar exercícios de interpretação de texto, isso só funciona se “valer nota”. Eu tento me esquivar deste tipo de relação de barganha em minha atividades em sala.

   Vejo ainda outro problema: ao pedir que os alunos leiam todo o texto para então tomá-lo como objeto de exposição, a tendência é que todas as eventuais dificuldades de interpretação ao longo da leitura fiquem esquecidas. O que permanece é uma noção confusa de um todo, sem a devida atenção ao caminho para a mensagem principal. Se o professor, em seu momento de expor o conteúdo do texto, limitar-se a fazer uma segunda leitura, há uma grande chance de dispersão dos alunos. E se partir diretamente para a exposição, a leitura inicial dos alunos fica sem um trabalho de problematização, permanecendo apenas como um passo inicial.

   Assim, costumo optar pela leitura conjunta, onde todos na sala seguem uma voz alta. Mas é preciso reconhecer que é muito difícil fazer com que a turma inteira realmente participe da atividade; sempre haverá alguém simplesmente olhando para o livro aberto ou mesmo conversando paralelamente.

  Gosto de ir alternando esta “voz guia” entre os alunos. Embora este seja um bom exercício para treinar a expressão oral e a desinibição de cada um, por vezes a leitura de um aluno com muita dificuldade na entonação das vírgulas, pontos finais e outras particularidades da escrita prejudica seriamente a compreensão daquilo que se está lendo. As vezes eu mesmo assumo a leitura em voz alta enquanto os alunos acompanham. Mas aí o que se ganha em clareza na audição do texto se perde em participação na atividade. Os alunos permanecem passivamente acompanhando o texto e muitos acabam se dispersando depois de algum tempo.

  Também costumo fazer alguns pontos de intervenção na leitura, parando e explicando algumas coisas que estão sendo lidas. Isso ajuda a manter a atenção, em vez de ler o texto todo sem nenhuma observação, para depois abordar o conteúdo.

   Outra coisa que as vezes funciona é pedir para que os alunos leiam um trecho de alguns parágrafos e anotem palavras que não conhecem, para que depois eu as vá explicando. Penso que a expansão do vocabulário do aluno é uma cruzada na qual o professor de filosofia deve se empenhar.

   Em resumo, ainda não estou satisfeito com a forma com a qual trago a leitura para minhas aulas de filosofia no ensino médio. Como já comentei em outras postagens, eu tenho como hábito estar sempre de olho no nível de atenção das minhas turmas às atividades propostas. E isso não para fazer um policiamento dos alunos, mas sim para ter um feedback real sobre o que funciona e o que não funciona didaticamente. Por isso mesmo, os momentos de leitura acabaram se tornando menos frequentes em minhas aulas. Eles ocorrem, mas não como um processo constante e contínuo como eu gostaria.

  Também por conta do pouco tempo semanal de que disponho com cada turma, acabo preferindo outras formas de interação mais eficazes. Em turmas de primeiro ano mesmo, com apenas uma aula e energia de sobra da gurizada, a leitura é um recurso pouco utilizado.

  Assim, aquele sonho inicial de instigar o questionamento filosófico por meio do contato com a própria letra dos filósofos ainda não aconteceu. Mas mantenho a esperança de ainda encontrar um modo de introduzir a leitura como um processo mais constante em minhas aulas. Desconfio que eu possa conseguir isso a partir do momento em que consiga desmontar o esquema clássico do ensino escolar, a saber: matéria no quadro → explicação → prova. E eu de fato já iniciei algumas tentativas nesta direção, como o que estou chamando de “aula sem matéria”.

   Mas isso é assunto para a fase seguinte desta série “como ensino filosofia?”. Aguarde!






FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

Acompanhe o projeto "Como ensino filosofia?". Toda quinta um novo conteúdo :)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Sociedade disciplinar e sociedade de controle

Série Boas práticas- Filosofia na Idade Média 2020b

PASSEIO VIRTUAL PELA EXPOSIÇÃO: DEUSES GREGOS - COLEÇÃO DO MUSEU PERGAMON DE BERLIM - FAAP 2006.