Como ensino filosofia? # 16 - Sobre ouvir música



Sobre ouvir música


  Se eu tivesse na escola minha própria “sala de filosofia”, onde recebesse todas as minhas turmas para as aulas, então certamente eu teria lá um toca-discos. Aí meus alunos poderiam vivenciar a experiência completa de ouvir o álbum de um artista ou de uma banda: enquanto os ouvidos acompanham a música, as mãos e os olhos investigam a capa do disco, o encarte e as letras. Uma atenção maior talvez revele o ano da obra e outros detalhes técnicos da gravação; algo muito diferente de simplesmente baixar todas as músicas de seu artista preferido em mp3.

   Mas de volta do sonho para a realidade das salas de aula, apesar do potencial das músicas como conteúdo para o ensino de filosofia, foi necessário um esforço considerável para vencer as dificuldades envolvidas em apresentar uma música para meus alunos. Como eu disse no vídeo, conseguir a atenção e o silêncio de uma turma inteira a ponto de apreender a letra de uma música não é tarefa fácil!

   Uma das formas mais comuns de fazer isso é realmente trazer a música para o centro da atividade e fazer com que os alunos copiem a letra no quadro, tocando a canção (antes de depois). Isso funciona, mas é um processo demorado, principalmente se a letra for grande. O trabalho de copiar uma letra de música inteira no caderno é um pouco entediante e pode, por si só, já trazer certa antipatia com relação à canção. Além disso, tal estratégia requer um trabalho forte de contextualização: afinal, por que copiar a letra de uma música no caderno tem a ver com o conteúdo que está sendo estudado? Esta é uma pergunta que todo aluno irá se fazer, de modo que é preciso avaliar se a relação entre o conteúdo da música e o que se pretende ensinar é de fato tão marcante.

   No meus caso, muitas vezes o recurso à letra de músicas é uma coisa feita de passagem, como apoio à argumentação que vou desenvolvendo para explicar a matéria. Por exemplo, a letra da música Cérebro eletrônico (https://www.youtube.com/watch?v=JFAHDYEMHEE) já me ajudou a ilustrar diferentes questões, como as críticas à perspectiva mecanicista ou a disputa entre inteligência humana e inteligência artificial. E sempre que acabamos entrando em tema ligados à discriminação racial trago o início de Etnia (https://www.youtube.com/watch?v=r49G6PXBhQY). 

  E como fazer isso aproveitando aquele momento único em que o tema surge e o conteúdo é oportuno? Cantando! Os alunos sempre acham graça quando faço a caneta de microfone e vou andando pela sala cantando uma música que geralmente eles nunca viram. Uns reclamam como eu canto mal, ouros ficam atônitos com a canção surgindo inesperadamente em meio ao discurso. De um jeito ou de outro, quase sempre é engraçado. Mas confesso que este é um recurso que usei bastante no início da carreira (de professor, não de cantor!) e que tem diminuído ao longo do tempo, porque cansa demais a garganta e, ao final de um dia inteiro de aula o custo sai alto.

   Conforme indiquei no vídeo, a forma mais bem sucedida que encontrei para trabalhar uma música foi tocando-a duas vezes com o auxílio do recurso audiovisual, uma primeira vez só a música e a segunda uma versão com a legenda da letra. Segue uma breve descrição de um trabalho que considerei o mais bem sucedido com o uso de uma música até agora. Trata-se de uma atividade de interpretação da música O pulso, dos Titãs (1989), feita com as turmas de primeiro ano do ensino médio.

 O pulso – atividade de interpretação da letra

   1 – Toco a primeira versão em vídeo: o clipe original da música O pulso , com os Titãs tocando ao vivo. https://www.youtube.com/watch?v=PH3kNbvjN9E

   2 – Breve contextualização sobre a banda Titãs o cenário do Rock brasileiro nos anos 80 (BRock). Pergunto então quem conseguiu entender alguma coisa da letra, qualquer palavra.(enquanto alguns já identificaram o nome de algumas doenças, outros verdadeiramente não entenderam uma palavra sequer).

   3 – Toco então a segunda versão da música, uma montagem com imagens que traz a legenda da música. https://www.youtube.com/watch?v=1eixKc_6fbo  Com essa versão todos conseguem compreender o conteúdo da música. Mas aí vem a pergunta crucial: “A música é sobre o que?”. Embora a resposta mais rápida e direta seja: “sobre doenças”, por vezes um ou outro aluno já captou que a música traz algo mais.

   4 – Projeto agora a letra da música escrita e passamos a analisar quais os tipos de doenças que a música traz. Vou esclarecendo algumas doenças que os alunos desconhecem até chegarmos à perceber uma distinção inicial entre doenças físicas e psíquicas. 

   5 – Mas além de doenças físicas e psíquicas aparecem na letra outras coisas que não são doenças, mas podem tornar-se doentias. Este é o momento principal da atividade, quando passo a perguntar para os alunos por que palavras como estupidez, ciúmes e hipocrisia estão colocadas ao lado das demais doenças. Aos pouco eles mesmos vão chegando à conclusão de que há uma intencionalidade na letra; vão de fato reconhecendo uma obra de arte.

   6 – Concluo a atividade mostrando como uma obra de arte consegue indicar diferentes sentidos e interpretações para um conteúdo; e como a filosofia lida com este olhar mais aprofundado sobre as coisas, que vai desvendando diferentes camadas de sentido. (tudo isso em 45 minutos). 


OBS: Esta atividade não se encontra nas aulas que compartilhei anteriormente aqui no Blog, pois já faz parte das inovações que passei a implementar em meu próprio curso; tema para a parte IV desta série; aguarde!


   Enfim, esta me pareceu a maneira mais efetiva de usar a letra de uma música como objeto de estudo e vencer a falta de atenção dos alunos. É claro que esta estratégia requer um trabalho de preparação mais intenso e que depende de alguns itens nem sempre disponíveis, como um clipe da música com a legenda. Trata-se de uma atividade de aprendizagem completa, não apenas de mostrar uma música aos alunos.

   Mas além do uso específico da letra de uma música, a intenção de trazer simplesmente mais música para a sala de aula continuou sendo atrativa para mim. Como mostrei no vídeo, um pequeno radinho com cartão de memória trouxe um recurso bem interessante para minhas aulas. Nos momentos de copiar matéria no quadro, as vezes pergunto à turma se querem escutar um som. De início esta iniciativa se limitava à oportunidade de trazer um pouco de entretenimento para a rotina da sala de aula. Mas com o tempo, fui percebendo como este momento também oportuniza uma troca (ou choque) cultural.

   Eu utilizo as músicas que frequentemente escuto. Os alunos tendem a protestar, perguntando e pedindo pelas músicas que eles escutam. Não se trata de impor o meu som e desqualificar o som deles. Mas é o caso de insistir para que eles escutem, pelo menos uma vez, algo diferente. E assim vou tentando variar as referências. 

  É bem comum, que após algumas audições alguém reclame: “mas professor, você não tem nada que a gente conhece?”. Mesmo quando se trata de reggae, que alguns adoram (e outros odeiam), o fato de ser uma banda desconhecida para eles  traz certo desapontamento. Toco Black Uhuru em vez de Soldier, ou Culture em vez Chimaruts só para tentar abrir um pouco mais os horizontes. Também é comum que, enquanto parte da turma siga escutando o som e copiando a matéria, alguns alunos já estejam com os fones de ouvido ouvindo sua própria música. A meu ver é o extremo do fechamento para coisas novas, bem característico de uma parte da juventude com a qual trabalho. Mas mesmo assim tudo bem.

   Ao me dar conta dessa possibilidade de troca cultural (por falta de afinidade) nos últimos tempos em tenho baixado alguns sons mais específicos para tocar para os alunos. Tenho dado mais prioridade a músicas em português e artistas e bandas brasileiros. Mesmo o Legião Urbana, que gravou verdadeiros hinos para gerações já não é conhecido por todos. Assim, me interessa mostrar como o Brasil já produziu tanta cultura musical de valor que eles desconhecem completamente.

   De um modo geral, a lição mais importante que tenho tirado desta interação musical é a de não querer fixar o que é a “boa música” de acordo com meus gostos. Ainda que eu não goste e não escute funk, sertanejo ou pagode, entendo que não é coerente com a postura projetada pelas minhas aulas de filosofia simplesmente desqualificar estes gêneros musicais como “não-música”, aumentando mais ainda a distância em relação a meus alunos. A liberdade dos gostos de cada indivíduo deve ser respeitada na prática. Se eles gostam de músicas que eu considero musical e culturalmente pobres, tudo bem. Não cabe a mim criticar ou rebaixar este gosto individual. Prefiro me limitar a manter o contraste, na medida em que no meu radinho não será possível encontrar tais músicas! O meu papel, nesse caso, se limita a mostrar o diferente, ampliando assim a possibilidade de escolha para além daquelas oferecidas pela cultura de massa.

   Por fim, cabe lembrar que, assim como todos os demais recursos pedagógicos que tenho apresentado nesta série, é preciso usar esse apoio da música com comedimento. Se em toda aula houver música enquanto se copia algo no quadro a coisa se torna banal e a atenção diminui. Isso pode resultar em um clima mais confuso e barulhento do que o normal em sala de aula.   Em geral, apenas uso música com os segundos e terceiros anos, que já me conhecem um pouco mais e sabem se comportar melhor. E mesmo assim, uso em apenas algumas aulas para não cair na rotina. 

  Reconheço que ainda explorei pouco o potencial pedagógico que as letras de músicas podem trazer para o ensino de filosofia. Já o potencial estético da música em geral está bem incorporado em meu de ensinar.

 Acompanhe o projeto "Como ensino filosofia?". Toda quinta um novo conteúdo :)


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