A atividade desenvolvida para a UA -Reflexões sobre Homem na Filosofia


A natureza humana em Hobbes e Rousseau: contraposição de elementos por meio da análise de duas obras literárias.

    

Fausto Barros de Sá Teles [1]

    

1 INTRODUÇÃO

          Este ensaio tem por objetivo identificar e comparar elementos antropológicos das teorias políticas de Hobbes e Rousseau presentes em duas obras literárias: “O Senhor das Moscas”, do inglês William Golding; e “Walden, ou A Vida nos Bosques”, do norte-americano Henry D. Thoreau.

A partir da discussão de noções sobre a natureza humana explícitas e implícitas nas duas obras, e de suas relações com as teorias políticas de Hobbes e Rousseau, busca-se entender as contribuições dessas manifestações artísticas para a visão antropológica, sob o prisma da antropologia filosófica; e explorar relações entre arte, política e antropologia.

    

2 DESENVOLVIMENTO

    

2.1 O olhar da antropologia filosófica

De acordo com Nesi e Marques (2018, p. 10), “a Antropologia Filosófica caracteriza-se por realizar o estudo do homem por meio do método filosófico” e preocupa-se com o Ser do Homem, isto é, com o conhecimento de sua essência, no sentido ontológico. Segundo os  autores, essa disciplina comunica-se intimamente com outros ramos da filosofia, como a Teoria do Conhecimento e a Filosofia Política.

Nesse sentido, a antropologia filosófica busca um olhar integral sobre o homem, bebendo da fonte dos mais diversos tipos de conhecimento, incluindo a arte; e pode lançar luz sobre tudo o que é do mundo humano, inclusive a política.



2.2 Natureza humana e teoria política: contrapondo Hobbes e Rousseau

Queriquelli (s.d.) inicia sua web aula em vídeo intitulada Natureza humana e teoria política com uma indagação inquietante: “Você já parou para pensar que a concepção de natureza humana de um pensador condiciona sua teoria política?”.

A indagação é um exemplo claro de interação entre a antropologia filosófica e a filosofia política. Argumenta o professor que quando um pensador tem uma visão positiva da natureza humana, concebe um Estado voltado à valorização dessa natureza e da liberdade, a fim de canalizar o (bom) potencial que cada indivíduo traz em si para o bem comum. Contrariamente, filósofos com uma visão pessimista da natureza humana tendem a idealizar um Estado forte e controlador, pois o creem necessário para frear os instintos perversos do homem, permitindo assim a convivência em sociedade.

Nesse contexto, Hobbes seria um exemplo de pensador com uma visão pessimista do homem. Segundo Hobbes (1974), a vida do homem no estado de natureza, sem os limites impostos pela civilização através do Estado, era “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”, uma vez que ele vivia em uma “guerra de todos contra todos”. Daí segue, naturalmente, o Leviatã de Hobbes: uma monarquia forte o suficiente para impedir a autodestruição dos homens.

Ao contrário, novamente segundo Queriquelli (s.d.), Rousseau dá ao homem um “voto de confiança”, pois acredita que ele traz em si a capacidade de buscar livremente a própria felicidade, em harmonia com outros homens. Logo, sua solução política é um Estado que coloca em primeiro lugar a liberdade, por meio da democracia direta.

A visão positiva da natureza humana de Rousseau, no entanto, conflita com a realidade que o filósofo observa diretamente, na qual são evidentes a desigualdade e o sofrimento. Assim, o pensador acaba por conjugar uma visão romântica do estado de natureza com certa desconfiança da civilização. Segundo Nesi e Marques (2018, p. 70), o genebrino “não acredita que o homem tenha progredido, vê a civilização, as artes e as ciências, no geral, como criadoras de hábitos e costumes negativos”. Tudo isso o leva também a uma valorização da intimidade, como forma de retorno à liberdade ou natureza original, e de escape dos problemas da sociedade: “esta esfera secreta, escondida dos demais, na qual cada um pode encontrar refúgio e alívio das loucuras da forçosa vida em sociedade.” (ROUSSEAU, 2000, p. 92).



2.3 O estado de natureza hobbesiano em “O Senhor das Moscas”

Em O Senhor das Moscas, um avião lotado de crianças e adolescentes cai numa ilha deserta. De início, os jovens sobreviventes se esforçam para manter os hábitos e códigos morais da civilização, mas, conforme sinopse publicada pela Folha de São Paulo, terminam “progressivamente cedendo à vida dos instintos, regredindo às pulsões de violência e de morte” e “o paraíso do bom selvagem acaba em carnificina”.

É inegável a semelhança entre o emocionante enredo de William Golding e o estado de natureza hobbesiano descrito em Leviatã. Sem um Estado organizado e sem autoridade (longe das Leis e de adultos), os instintos humanos (antes dormentes nos jovens da história) terminam inexoravelmente em uma guerra de todos contra todos. No enredo, as disputas de poder entre os adolescentes, conjugadas com as dificuldades da vida natural, resultam em sangue e caos.

Assim como Hobbes, Golding tinha bons motivos para desconfiar da natureza humana: o livro foi escrito em 1954, menos de uma década depois do fim da Segunda Guerra. Enquanto o Leviatã, na mitologia, é um monstro marinho do caos primitivo, “senhor das moscas” é a tradução literal da palavra hebraica Ba’alzeubul - em português, “Belzebu”. Na origem, antes da civilização, há o caos; e o demônio que em cada um habita domina o homem.



2.4 Liberdade perdida e decadência civilizatória em “Walden, ou A Vida nos Bosques”

Em Walden, ou A Vida nos Bosques, Thoreau narra sua experiência de dois anos, quando decidiu se afastar do convívio na cidade de Concord para viver em isolamento às margens do lago Walden. O livro, belo e profundo, defende a possibilidade (e a riqueza) de uma vida sem luxos, em íntimo contato com a natureza e com os livros; ao mesmo tempo em que critica as dificuldades e necessidades artificialmente criadas pela vida em sociedade. Logo no início, em um dos trechos mais famosos da obra, Thoreau escreve:



Eu fui à Floresta porque queria viver livre. Eu queria viver profundamente, e sugar a própria essência da vida... expurgar tudo o que não fosse vida; e não, ao morrer, descobrir que não havia vivido. (THOREAU, 2018)



          Percebe-se, no trecho, elementos rousseaunianos antes apontados: a paixão pela liberdade, a idealização da vida natural e a desconfiança da vida em sociedade. A vida natural seria real, essencial, profunda. A vida em sociedade artificial, supérflua, superficial. O homem é bom em sua natureza original, mas decai quando em sociedade.



3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A leitura de o O Senhor das Moscas entrega ao leitor uma experiência muito vívida de conflitos e sentimentos prováveis em uma situação de colapso civilizatório. A importância da ordem, da autoridade, das leis, da institucionalidade torna-se cristalina. O mal que em cada um habita torna-se evidente. A visão de um homem puro, mas corrompido pela sociedade, é enfraquecida.

De outra parte, ao ler Walden, ou A Vida nos Bosques, é inevitável experimentar algum sentimento de vínculo perdido com a vida natural. Surge uma espécie de saudade de uma vida não vivida, mas que soa mais real do que esta que de fato vivemos. Não há como deixar de questionar se a vida civilizada, com todos os seus confortos, não passa mesmo de uma falsa liberdade. Teria a sociedade acabado com algo naturalmente bom em nós? Apesar de não se tratar de um livro político, não é à toa que seu autor escreveu também A desobediência civil. São consequências naturais, pois as visões antropológica e política se conversam, como já discutido. Como em Rousseau, a valorização da liberdade e da intimidade, em conjunto com a desconfiança das autoridades (do Estado), são traços do pensamento de Thoreau que o aproximam de certas correntes do libertarianismo.

Verifica-se, assim, que a arte é capaz de mobilizar afetos com uma intensidade e em dimensões que são inacessíveis para a filosofia, pois a experiência estética vai além do discurso puramente racional. Toda arte, no sentido que aqui se discute, não só comunica uma visão de homem, como a inscreve em camadas profundas da psique, produzindo amplos efeitos sobre a sociedade e, claro, sobre os ideais políticos dessa mesma sociedade. Nesse mesmo sentido, pode-se afirmar que a diversidade na produção e no consumo de arte pode contribuir diretamente para a construção de uma visão mais integral do homem.

Reconhecendo, finalmente, que o formato curto deste trabalho implica em difíceis escolhas hermenêuticas e graves simplificações, espera-se não ter cometido nenhuma grande injustiça com os pensadores ora discutidos.



REFERÊNCIAS



FOLHA DE SÃO PAULO. O Senhor das Moscas - sinopse. Disponível em: http://biblioteca.folha.com.br/1/19/sinopse.html . Acesso em 19.05.2019.



GOLDING, William Gerald. Senhor das Moscas. Alfaguara / Objetiva. 2014.



HOBBES, Thomas. Leviatã (Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1974.



NESI, Maria Juliani e MARQUES, Carlos Euclides. Reflexão sobre o homem na filosofia : livro didático. 1. ed. atual. – Palhoça: UnisulVirtual, 2018.



QUERIQUELLI, Luiz Henrique. Natureza humana e teoria política : web aula. UnisulVirtual, s.d..



ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens; Discurso sobre as ciências e as artes (Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 2000.


THOREAU, Henry David. Walden, Ou A Vida Nos Bosques. Sào Paulo: Edipro. 2018


[1] Aluno de graduação do curso de Bacharelado em Filosofia da Universidade do Sul de Santa Catarina -  Unisul. Mestrando em Poder Legislativo pelo Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento da Câmara dos Deputados - Cefor.

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