Mais um texto da série Boas produções (2019-b)
A ARTE
MODERNA NA AMÉRICA LATINA A PARTIR DO PENSAMENTO DE EDUARDO SUBIRATS
Denis
Netto Duque da Silva[1]
A autonomização do campo artístico, se analisada a partir de uma
perspectiva histórica, encontra seus rudimentos no período renascentista e seu florescimento
no período moderno, e é a partir da consideração deste arco histórico que se pretende
analisar o rompimento do pensamento artístico europeu com a tradição e sua
relação com a arte moderna na América Latina; esse desdobramento da arte ao
longo da história, que, como dito, tem epicentro na Europa, quando exportado
para a América Latina, acaba ameaçando a memória cultural desse povo, funcionando
para colocar a arte aí produzida, em uma posição de subserviência, posição essa
que se perpetua, pois encontra legitimidade nas instâncias sociais de difusão
de informação que, ideologizadas pela industrial cultural, esvaziam a arte de
qualquer sentido crítico e cultural propriamente latinos, transformando-a em
mercadoria de reprodução fácil e consumo rápido; é dentro dessa perspectiva que
o presente escrito pretende encaminhar sua reflexão, tendo como norte o viés do
filósofo espanhol Eduardo Subirats.
É a partir do século XVI, com o movimento renascentista iniciado na
Itália, que o artista deixa de ser mero artesão e passa a ser reconhecido como
um trabalhador intelectual, isso vai contribuir para que, com o avançar da
história, seja erigida uma “autonomia[2] no
campo das produções artísticas” (KAMINSKI, 2006, p. 4); tal processo se faz de
maneira paulatina, na proporção em que se vai construindo “um campo intelectual
artístico [específico] [...] em contraste com o campo econômico, com o campo
político e com o religioso” (Idem, 2006, p. 4).
Assim, na medida em que a arte vai se afirmando como um campo social autônomo,
procura romper com a tradição clássica, já que precisa construir uma identidade
própria, que até então lhe fora negada (porque a arte, antes, de alguma forma,
estava subordinada, quer a uma instituição, como a religiosa, quer presa a uma função, que não propriamente estética, como a
função pedagógica) e isso encontra seu ápice na modernidade europeia, como bem
aponta Kaminski, onde um “aspecto vinculado ao processo de autonomização social
da arte no caso europeu [é]: a ruptura com a tradição clássica, atitude que
viria a fundar uma nova tradição, a ‘moderna’” (2006, p. 4).
Todavia, não é só no âmbito da manifestação artística que as tradições
vão perdendo força, trata-se de uma característica social mais ampla, isso
anuncia, vai dizer Giddens (1997, apud BUENO, 2010, p. 28), “a formação
de uma sociedade pós tradicional, onde as tradições perdem sua eficácia
enquanto forças motrizes da vida social, que, por sua vez, se converte em um
espaço cada vez mais indefinido”. É dentro dessa conjuntura social de indefinição
que Bueno caracteriza, na arte, a questão da “amnésia”, como sendo um artifício
usado pelos modernistas europeus para “se libertarem de uma cultura tradicional
ainda atuante” (2010, p. 30). Justamente acerca dessa questão da amnésia/memória
que o filósofo espanhol Eduardo Subirats proporá uma reflexão no sentido de que,
quando tal tema, no âmbito da arte moderna, chega à América Latina, ele está
destituído da historicidade com que aparecera no cenário europeu (que tencionava
se livrar do peso da tradição nesse processo de busca de autonomia social da
arte), dessa maneira, acaba funcionando aqui (na América Latina) como um
apagador da identidade e da memória latina, servindo “aos projetos de dominação
que propõem despojo das culturas como estratégia de destruição dos povos” (SUBIRATS,
2005, p. 149).
Mas a crítica de Subirats não se detém aí, ela vai mais além, porque aponta
para os sustentáculos dessa arte sem memória que, em seu entender, apaga a
identidade cultural latino-americana. Pois bem, em síntese, o processo de
autonomia do artista e da arte, que se inicia, como já dito, no Renascimento,
vai encontrar mais força quando, na modernidade, a Revolução Industrial, desenvolvendo
novas tecnologias, faz crescer as cidades e, com isso, as recém-criadas “instâncias
de [...] difusão (jornais, editoras), passaram a partilhar a tarefa de
selecionar e de legitimar o trabalho de alguns artistas em detrimento de outros”
(BOURDIEU, 1999, apud KAMINSKI, 2006, p. 4), ou seja, é “o universo da
cultura e das artes se desenvolvendo interligado com a indústria cultural”
(BUENO, 2010, p. 27, grifo nosso), cujas origens remontam aos anos de 1960.
Assim, é para Subirats, essa cultura esvaziada e tornada mercadoria para
consumo rápido e massivo (caracterizada pelo fenômeno da indústria cultural) que
impediria a conscientização do meio artístico e do próprio público em geral
para a necessidade de uma retomada da tradição que permitisse o fim da
submissão artística latino-americana e a consequente reconstrução de uma identidade
artístico-cultural própria; nas palavras de Subirats:
[...] postulo a
necessidade de retomar a tradição intelectual crítica latino-americana que a
academia corporativa norte-americana e a indústria cultural europeia enterraram
debaixo de uma avalancha de patéticas veleidades narcisistas e produtos literários
descartáveis (SUBIRATS, 2005, p. 156).
Assim, com essas instâncias de difusão ganhando cada vez mais força (em
virtude dos implementos tecnológicos) e passando a influenciar cada vez mais a
arte, deixando-a subjugada à lógica mercantil, muitos artistas, seguindo na
contramão da crítica de Subirats, se adequaram a essa nova faceta social e “se
beneficiaram da ‘abertura’ dos meios de massa para conquistar prestígio popular
[...]” (KAMINSKI, 2006, p. 8); outros, entretanto, inconformados com essa
situação, buscam “salvaguardar a arte frente aos tentáculos da lógica
publicitária” (Idem, 2006, p. 8), isto é, buscam livrar as artes das
influências da indústria cultural e, nesse sentido, se alinham a Subirats, como
é o caso do artista brasileiro Cildo Meireles e dos artistas luso-brasileiros
Antônio Manuel e Artur Barrio, que “fazem de suas trajetórias tanto um sinal de
seu radicalismo experimental e libertário quanto uma nova e possível
alternativa frente aos canais tradicionais de circulação de obras e valores do
meio artístico” (Idem, 2006, p. 8)
Isto posto, o presente escrito finaliza sua reflexão sem intenção de dar qualquer
resposta definitiva quanto à problemática em pauta, mas, ao contrário, finaliza
com esperança de, mesmo que em pequena medida, fomentar o debate sobre o trabalho
artístico na América Latina.
REFERÊNCIAS
BUENO, Maria Lúcia. Do moderno ao contemporâneo: uma perspectiva
sociológica da modernidade nas artes plásticas. Revista de Ciências Sociais,
Ceará, v. 41, n. 1, p. 27-47, 2010. Disponível em: <http://www.periodicos.ufc.br/revcienso/issue/view/67>.
Acesso em: 11/11/2019.
KAMINSKI, Rosane. Notas sobre a legitimação da arte. Revista
Científica/FAP, Curitiba, v. 1, jan./dez. 2006. Disponível em: < http://periodicos.unespar.edu.br/index.php/revistacientifica/issue/view/121/showToc>.
Acesso em: 11/11/2019.
SUBIRATS, Eduardo. Entrevista. [Entrevista concedida a]
Silvia Carcamo. Revista Alea, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 149-158, jan./jun.
2005. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2005000100010&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em: 11/11/2019.
[1] Estudante
do curso de Filosofia da Unisul.
[2]
Por extrapolar os limites do presente texto, não se adentrará nos pormenores da
discussão quanto aos significados do termo “autonomia” no contexto da arte na
modernidade, todavia, convém fazer o seguinte apontamento: “A falta de clareza
sobre o emprego do conceito de autonomia em muitos textos atuais, no entanto,
torna-se um problema, porque dá margem a confusões e imprecisões, como, por exemplo,
o emprego do termo com o seu significado de ‘liberdade’ ou ‘independência das
artes’ em relação ao contexto sócio-econômico [sic], em contraste com a
posição extremamente contrária dos que vêem [sic] a arte como mero
reflexo de uma infra-estrutura [sic] condicionante” (KAMINSKI, 2006, p.
5).
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