Resenha da série Boas produções 02/11/2019

Arte da Renascença: um método de estudo proposto por Erwin Panofsky


Edvaldo Nazareno Carvalho Faria


Iconografia e iconologia: uma introdução ao estudo da Arte da Renascença, de Erwin Panofsky. Ensaio extraído do livro Significado nas Artes Visuais. Tradução de Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg. – 4. ed. – São Paulo: Perspectiva, 2017, pp. 47 a 87. (Debates; vol. 99; dirigida por J. Guinsburg). ISBN: 978-85-273-0243-8.

Erwin Panofsky (1892-1968). Historiador e crítico de arte americano nascido na Alemanha. Autor de estudos sobre iconografia e simbologia e a relação da arte com outras manifestações culturais. Arquitetura gótica e escolástica (1951), Significado nas artes visuais (1955). (BARSA, 2004).


O autor apresenta no referido ensaio, em suas próprias palavras, “uma introdução ao estudo da Arte da Renascença”, e utiliza, para tanto, dois conceitos: a iconografia e a iconologia. Ele se cerca desses elementos para dar substância à sua aproximação com a arte manifestada no período renascentista. O trabalho é rigorosamente dividido em dois capítulos. No primeiro, o ensaísta procura definir os dois termos que lhe são caros para enfrentar a questão a que se propõe. No segundo, de posse das ferramentas devidamente calibradas, colimadas e ajustadas, ele envereda, então, na apreciação de algumas das obras de arte produzidas durante o período que ficou batizado de Renascença, com o fito de provar que seu método é suficientemente eficaz para deslindar os obstáculos que se apresentam para a consecução da desafiadora empreitada.
Preliminarmente o autor informa que iconografia “é a descrição e classificação das imagens (...) é um estudo limitado e (...) que nos informa quando e onde temas específicos foram visualizados por quais motivos específicos” (2017, p. 53). Por sua vez, iconologia, diz o autor, “é um método de interpretação que advém da síntese mais que da análise” (2017, p. 54). Portanto, vê-se que, na apreciação de uma obra de arte, há uma ordem de aparição dessas duas searas do conhecimento. A iconografia é a primeira a se manifestar; ela se encarrega da preparação de um dossiê da obra a ser apreciada; ela faz um verdadeiro check up do objeto artístico posto sob a sua mesa de trabalho. E sai de cena. Em seguida, de posse desse dossiê, aparece a iconologia para dar seguimento à tarefa. E é nesse momento que se faz a síntese da obra de arte sob exame: a tão esperada interpretação do trabalho artístico, enfim, será revelada.
No ponto essencial do ensaio, o autor se volta para o renascimento da Antiguidade clássica, tendo em seu embornal as ferramentas de trabalho mencionadas acima, as quais o qualificarão para aferir as obras de arte confeccionas no período discriminado. Assim, o ensaísta apresenta uma série de situações em que ele se utiliza de seu método para interpretar as obras de arte, classificando-as quanto ao estilo, aos gostos e as tendências intrínsecas de cada qual.
O escritor Erwin Panofsky me assombra com sua sensibilidade, com suas observações de profundo conhecedor da arte. Digo isso porque essas informações me teriam sido úteis quando visitei uma mostra de arte inesquecível. Esse tesouro informativo me teria socorrido numa ocasião em que estive frente a frente com a grande arte. Foi em uma mostra que ocorreu na cidade onde nasci – Montes Claros (MG) –, no período de 8 a 15 de agosto de 2005. Conforme matéria veiculada à época no Jornal O Norte (2005), tratava-se de nove esculturas, cujas reproduções técnicas eram assinadas e autenticadas pelo Museu do Louvre – Paris, do artista francês Auguste Rodin. Faziam parte da exposição: O Pensador, O Beijo, A Toalete de Vênus, O Ídolo Feminino, A Danaíde, As Sereias, O Burguês de Calais, O Menino Prodígio e O Ídolo Eterno.
Aproximei-me com muito cuidado de cada uma das obras do artista Rodin. Mantive certa distância de cada uma delas, em respeito pela significação que elas representam na história da arte. De maneira sutil pude notar que o grande escultor francês convocava o espectador para um diálogo silencioso. A obra estava ali, a minha frente; todo o esforço produzido por ele só valeria à pena se esse diálogo se realizasse. Essa foi a impressão que tive quando apreciei as esculturas ali expostas. Mesmo que não tenha sido essa a ideia do escultor, pareceu-me pertinente que ele com sua sábia veia artística revelava nas entrelinhas. Coisa de mestre.
Quando se fala em Rodin não se pode deixar de citar o escritor austríaco Stefan Zweig (2014) que presenciou o brilhante artista trabalhando em seu ateliê:
Rodin estava tão absorto, tão mergulhado no seu trabalho, que nem um trovão o teria despertado. Seus movimentos iam se tornando cada vez mais violentos, quase furiosos; foi tomado por uma espécie de exaltação ou de ebriedade, trabalhando cada vez mais rápido. Então, suas mãos foram se tornando mais lentas. Pareciam ter reconhecido que não havia mais o que fazer. Recuou uma, duas, três vezes, sem modificar mais nada. Depois, murmurou alguma coisa, recolocou os panos em torno da estátua tão carinhosamente quanto se coloca um xale nos ombros da mulher amada.
O ensaio de Panofsky, no qual se menciona um intrigante método, faz-me lembrar do trabalho produzido por René Descartes (2004), que também criou um modelo de aferição para examinar questões diversas partindo de um receituário protocolar (duvide, analise, sintetize e enumere) a fim de se chegar a uma boa conclusão dos fatos a serem examinados. Outra conexão que faço é com a teoria do filósofo suíço Ferdinand de Saussure (Apud BUCKINGHAM, 2016, p. 223) que, examinando a linguagem, verificou que ela é composta de duas coisas: o significante e o significado. A primeira, de acordo com ele, representa a imagem; a segunda, o conceito. Vê-se que há uma semelhança vigorosa nas ideias dos dois pensadores, Saussure e Panofsky.
Esse esforço despendido por Panofsky ao elaborar esse ensaio não deve ser desprezado. É que a arte requer labor, paciência e determinação. Esse cuidado que o ensaísta manteve durante todo o seu percurso, a fim de esmiuçar as cenas mostradas nos trabalhos artísticos, comparar os costumes, a cultura, a tradição dos protagonistas retratados, é digno de admiração, pois ele, ao mesmo tempo em que examina a obra de arte, produz filosofia da mais pura linhagem.
É Benedito Nunes (2016, p. 16) quem ilustra competentemente essa questão do labor no exame das obras de arte:
A perspectiva inicial da Estética, definida pelo fundador dessa disciplina, Baumgarten, e consolidada por Emmanuel Kant, desdobra-se, pois, em muitas perspectivas parciais interligadas: filosofia do Belo, estudo da experiência estética, investigação da estrutura das obras de arte – que são objetos dessa experiência – e conhecimento dos valores a que esses mesmos objetos se acham ligados. Assim, na acepção ampla para a qual todas essas correntes confluem, a Estética é tanto filosofia do Belo como filosofia da Arte.
Encerro reproduzindo uma inusitada concepção do mesmo Benedito Nunes (2016, p. 110): “Em cada obra de arte que se produz está em jogo o destino da arte; em cada uma delas o artista arrisca-se a matá-la ou a fazê-la existir”.



REFERÊNCIAS
BARSA: Grande Enciclopédia Barsa. Micropédia, vol. II. – 3. ed. – São Paulo: Barsa Planeta Internacional Ltda., 2004, p. 253. ISBN: 85-7518-185-8.
BUCKINGHAM, Will et al. O livro da filosofia. Tradução: Douglas Kim. – 1. ed. – São Paulo: Globo Livros, 2016, p. 223. ISBN: 978-85-250-6309-0.
DESCARTES, René. Discurso do Método. Tradução: Enrico Corvisieri. – São Paulo: Nova Cultural, 2004. (Coleção Os Pensadores). ISBN: 85-13-00851-6.
MOC recebe obras do artista francês Rodin. Jornal O Norte, Montes Claros, 28 de jul. de 2005. Disponível em: <https://onorte.net/educa%C3%A7%C3%A3o/moc-recebe-obras-do-artista-franc%C3%AAs-rodin-1.532035>. Acesso em: 25 de out. de 2019.
NUNES, Benedito. Introdução à Filosofia da Arte. São Paulo: Edições Loyola, 2016, pp. 16 e 110. ISBN: 978-85-15-04370-5.
PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. Tradução: Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg. – 4. ed. – São Paulo: Perspectiva, 2017. (Debates; vol. 99; dirigida por J. Guinsburg). ISBN: 978-85-273-0243-8.
ZWEIG, Stefan. Autobiografia: o mundo de ontem – memórias de um europeu. – Recurso eletrônico. – Tradução: Kristina Michahelles; prefácio e posfácio: Alberto Dines. – Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 2014. ISBN: 978-85-378-1388-1

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