Séria Boas práticas - Textos filosóficos antigos e medievais 2020b - explicação e comentário

 

A passagem escolhida

 

A passagem a seguir é um diálogo entre Adimanto e Sócrates. Adimanto pergunta a Sócrates:

 

– A que malfeitorias te referes?

– Por exemplo, roubam, assaltam casas, vão às carteiras, tiram a roupa, saqueiam os templos, vendem como escravos pessoas livres; há-os que são delatores, quando têm capacidade de falar, que são falsas testemunhas e que aceitam subornos.

– São realmente pequenas malfeitorias, se esses homens forem em pequeno número!

– Sim, porque o pequeno é pequeno em comparação com o que é grande, e todas estas malfeitorias, comparadas com o que é um tirano, relativamente à perversão e desgraça de uma cidade, não lhe chegam, como é costume dizer-se, aos calcanhares. Porém, quando num Estado há muitas pessoas desse jaez, e são muitos os que as seguem, e eles se apercebem do seu número, então são esses os que, com a cumplicidade da estupidez do povo, geram um tirano, que será aquele que, dentre todos, albergar na sua alma o tirano maior e mais completo.

(PLATÃO, A República, IX, 575b-d).

 

 

 

 

Texto de explicação:

 

 

Pequenas malfeitorias que acabam por originar um tirano

 

 

Edvaldo Nazareno Carvalho Faria

 

 

Há uma marcante diferença entre explicação e comentário de um texto. Marques (2012, p. 25) traz uma citação de Dominique Folscheid e Jean-Jacques Winenburger (1997, p. 30), extraída da obra Metodologia Filosófica, que assim esclarece:

Para dizer em poucas palavras, a explicação de texto busca saber o que um autor verdadeiramente disse numa dada passagem, enquanto o comentário é uma interrogação armada (de referências, sobretudo) sobre o que ele disse de verdadeiro.

A explicação é uma tarefa bem delimitada, portanto estritamente limitada.

 

Deste modo, mantendo-se fiel ao mandamento contido na anotação supra, procurar-se-á tecer uma breve explicação a propósito de excerto de diálogo contido em obra do filósofo Platão.

O diálogo entre Adimanto e Sócrates reproduzido na abertura deste trabalho (PLATÃO, A República, IX, 575b-d) tem como escopo o exame de pequenas infrações cometidas por pessoas desonestas que vivem no seio da comunidade. Essas malfeitorias serão danosas para as famílias e, consequentemente, para o Estado, visto que, quando o número dessas práticas se avolumarem a tal ponto cujos autores representarem uma fração significativa do todo, o Estado oferecerá condição suficiente para gestar um tirano.

Ao ser indagado por Adimanto que pequenas malfeitorias seriam essas, Sócrates responde de forma exemplificativa: os assaltos a casas, às carteiras, ao vestuário, aos templos – enfim, pilhagem de forma geral; a venda de pessoas livres como se escravas essas pessoas fossem; o cometimento de delação, caso o infrator seja hábil na oratória; o desempenho no papel de falsas testemunhas e o ato de dar-se a subornos.

Em seguida, Adimanto faz uma observação importante, alegando que a caracterização de pequenas malfeitorias se sustentaria se os homens que as praticassem fossem em pequeno número. Sócrates aproveita essa ressalva de Adimanto para contabilizar consequências mais sérias que viriam como engodo, no caso de as práticas desonestas se fizessem crescentes. Porquanto, diz Sócrates, a comparação da grandeza é em relação a dois referenciais distintos: “... o pequeno é pequeno em comparação com o que é grande” (PLATÃO, A República, IX, 575c). E explicita seu raciocínio fazendo o cotejo entre as malfeitorias mencionadas e a prática advinda do tirano, a qual se baseia fundamentalmente na perversão para causar a desgraça na comunidade que governa. O que vem deste indivíduo, segundo Sócrates, sobrepuja largamente em atrocidade ao conjunto de todos os malfeitos acima elencados.

Entretanto – reflete Sócrates –, o maior mal é outro: quando os praticantes de malfeitos consistirem em uma legião de seguidores, de tal forma que desencadeie a conquista da cumplicidade do povo, em virtude do número arrasador de adeptos, a gestação de um tirano já pode ser vislumbrada. E Sócrates vai mais longe, chega mesmo a vaticinar quem seria o escolhido para ocupar o posto de déspota desse Estado: “... será aquele que, dentre todos, albergar na sua alma o tirano maior e mais completo” (PLATÃO, A República, IX, 575d).

Quando a situação atingir o ponto identificado acima, em que os malfeitos e os malfeitores estão disseminados abundantemente em todos os quadrantes do território examinado, tudo isso em virtude da estupidez do povo, uma certeza se destaca: aquele cidadão que apresentar mais contundência, robustez e agressividade em sua capacidade de causar danos, sem nenhuma piedade e com excesso de covardia a terceiros, está assinalado para ser o líder inconteste dessa imaginada comunidade.

 

 

Referências

MARQUES, Carlos Euclides. Discurso filosófico I: livro didático. Design instrucional: Marina Cabeda Egger Moellwald. Palhoça: UnisulVirtual, 2012.

FOLSCHEID, D.; WUNENBURGER, J-J. Metodologia Filosófica. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

PLATÃO. A República. Introdução, tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

 


 

Texto de comentário:

 

 

Os sinais da chegada da tirania e o levante do homem de bem

 

 

Edvaldo Nazareno Carvalho Faria

 

 

Sempre que se ouve a declaração de que um livro escrito há muito tempo continua atual, costuma-se duvidar dessa premissa. A alegação é que declarações como essa já viraram lugar comum, são inócuas, não acrescenta coisa alguma. No entanto, é preciso dizer que o recorte reproduzido na abertura deste trabalho (PLATÃO, A República, IX, 575b-d) convoca a mente do homem minimamente atento a reconhecer que o assunto ali tratado é sério demais e, sim, muito atual. Visto que Platão está apontando, com absoluta clareza, o momento em que o tirano tem origem; mais que um alerta, é uma denúncia; ele está mostrando com fartura de argumentos as condições necessárias para a eclosão do câncer da tirania em um Estado. Em qualquer Estado.

Os céticos poderão dizer: “Isso é verdade? Um tirano pode desestabilizar a rotina de vida de um povo? Pode causar uma mudança que transforme a vida dessas pessoas em um inferno? Será isso plausível? Um único homem pode fazer isso?”. O historiador Eric J. Hobsbawm (1995, p. 43) diz que sim: “Em termos mais simples, a pergunta sobre quem ou o que causou a Segunda Guerra Mundial pode ser respondida em duas palavras: Adolf Hitler”. E até Nietzsche, que não tinha lá grandes simpatias pelas ideias do filósofo grego, como se vê, por exemplo, no capítulo X (O que devo aos antigos), seção 2, da obra Crepúsculo dos ídolos (NIETZSCHE, 2017, pp. 86-7), confirmava a dissimulação praticada por esse horroroso déspota, que se traveste de Estado (NIETZSCHE, 2018, p. 46): “Estado é o nome do mais frio de todos os monstros frios. E de modo frio ele também mente; e esta mentira rasteja de sua boca: ‘Eu, o Estado, sou o povo’”.

Aí vêm aqueles que beiram ridiculamente o território da ingenuidade, tais como Rousseau (2017, p. 10), que assim se expressa:

Eu gostaria de nascer num país em que o soberano e o povo tivessem um só e mesmo interesse, para que todos os movimentos da máquina sempre tendessem à felicidade comum; como isso não pode ser feito a não ser que o povo e o soberano sejam a mesma pessoa, segue-se que eu gostaria de nascer num governo democrático, sabiamente moderado.

 

Mas Platão é crítico dessa forma de governo desejada por Rousseau: democracia. O filósofo ateniense a considera como um trampolim para a efetivação da tirania, que é o mais expressivo modelo de dilapidação dos direitos dos homens. Como ensina Marques (2012, p. 177):

A cidade tirânica é a mais injusta. Nela, vê-se pobreza em excesso, violência, muitos ladrões e aproveitadores. Ela nasce da cidade democrática, que tem um excesso de liberdade. Mas como o povo é ignorante e em maioria, com o surgimento da discórdia, é enganado com promessas e mentiras por aquele que se tornará um tirano logo após “eleito” pelo povo, usando-se de violência para se manter no poder.

 

Fica, portanto, o alerta – ou melhor, a denúncia – do mestre ateniense para todos aqueles que primam pela liberdade verdadeira. Ele está clamando a todos os homens da comunidade, mediante o seu personagem Sócrates, e o recado é cristalino: prestem atenção nos sinais. João Guimarães Rosa (2006, p. 13) exemplifica: “... passarinho que se debruça – o vôo já está pronto!”. Quando se tornarem evidentes aqueles sinais que favorecem o nascimento de um governo espúrio, resta ao homem de bem tomar providências de imediato, para estancar a ascensão da iniquidade, e evitar com isso que tempos tenebrosos se instalem na vida do povo.

 

 

Referências

HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução: Marcos Santarrita; revisão técnica: Maria Célia Paoli. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

MARQUES, Carlos Euclides. Discurso filosófico I: livro didático. Design instrucional: Marina Cabeda Egger Moellwald. Palhoça: UnisulVirtual, 2012.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. [Primeira parte, “Do novo ídolo”]. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. 1. ed. São Paulo: Companhia de Bolso, 2018.

_______. Crepúsculo dos ídolos, ou Como se filosofa com o martelo. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. 1. ed. São Paulo: Companhia de Bolso, 2017.

PLATÃO. A República. Introdução, tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 1. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. (Biblioteca do Estudante).

ROUSSEAU, Jean-Jacques. A origem da desigualdade entre os homens. [À república de Genebra]. Tradução: Eduardo Brandão. 1. ed. São Paulo: Peguim Classics/ Companhia das Letras, 2017.

 

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