Série Boas produções - 2020b Textos filosóficos antigos e medievais.

 

Na República de Platão, os guardiões são felizes

 

Edvaldo Nazareno Carvalho Faria

 

Introdução

 

É próprio dos filósofos estabelecerem um caminho para estampar suas ideias. Esse caminho, qualquer que seja ele – e são muitos os caminhos porque são muitos os filósofos –, é revestido de um matiz que traz em seu bojo uma rigorosa medida, como se fora sua régua de pedreiro, sua ferramenta a qual lhe possibilitará afirmar se tal ou qual argumento está contemplado no universo criado por ele, ou se deva ser descartado. Só para ficar em um exemplo, René Descartes (2004, pp. 49-50), em sua obra Discurso do método, criou seu caminho. O filósofo francês elencou os passos basilares de sua caminhada, enquadrando cada objeto de seu estudo com um implacável crivo, seguindo um roteiro preestabelecido: primeiro duvidar, depois analisar, em seguida sintetizar e por último enumerar. Após esses cuidados imprescindíveis, Descartes dizia estar apto a tomar sua decisão.

Platão tinha um método, ele se utilizava das benesses advindas da dialética. Por meio do diálogo, o assunto objeto da conversação era examinado sem nenhum afobamento; melhor, com cautela de sobra. Todos os aspectos do tema eram analisados à exaustão: os prós e os contras. O argumento apresentado por um dos debatedores para ter sua validade confirmada precisava ficar de pé após o exame de sua consistência. A novidade trazida pelo método platônico consiste na dizimação de hipóteses. Ou seja, a hipótese que não se apresentasse por inteiro ao final da análise – da ruma de auscultação a qual ela era submetida –, sua inconsistência seria alardeada aos quatro ventos; na maioria das vezes, com o apoio total do propositor da matéria, em virtude da clareza e probidade com que o trabalho era desenvolvido.

O que mais impressiona e cativa no texto de Platão é sua impoluta beleza literária. É um autor que tem domínio absoluto da cena. Seus personagens entabulam conversações que, em um primeiro momento, tem-se a impressão de que estão divagando demasiadamente, mas não é o que ocorre de fato. Nesse extraordinário diálogo intitulado A República (PLATÃO, 2001), vê-se que o modus operandi do filósofo grego é notável. O subtítulo desse livro é Da justiça, entretanto, esse tema não é apresentado de imediato ao leitor. Platão encaminha o interessado por um itinerário instigante. Sua conduta não é linear, longe disso. Ele vai espraiando suas especulações por meio dos personagens e lá na frente, aquele assunto cujo exame havia sido abandonado por motivos os mais diversos, retorna integralmente para receber, enfim, seu apropriado desfecho. 

Um dos recursos muito praticado por Platão é a digressão. Por isso, Marques (2012, p. 53) aconselha: “... você deve ter muita atenção no processo de leitura... da obra A República, de Platão, pois, ... o texto platônico não lhe dá de imediato o tema a ser trabalhado”. O personagem dono da palavra inesperadamente faz uma interrupção no fio condutor do diálogo para enveredar por outros assuntos. No entanto, pode o leitor ficar tranquilo, porque Platão está no controle da nau. Aquele fio condutor será retomado mais adiante com todo brilhantismo e eficiência pelo autor ateniense.

O que retrataremos neste trabalho é a visualização dessa técnica: uma questão suscitada no início do Livro IV da obra terá sua resposta apresentada apenas no meio do livro seguinte. Trata-se da felicidade dos guardiões. Essa fortuna é experimentada por esses cidadãos? Visto que, veja bem, enquanto os outros indivíduos possuem terras, constroem suas casas, fazem seus sacrifícios aos deuses e são beneficiários de enormes regalias, os guardiões, por sua vez, ganham apenas seu sustento e nenhuma remuneração a mais. Sendo assim, esses seres podem ser felizes?

Com a finalidade de examinar essa hipótese, nesse pequeno texto inspirado em esquema idealizado por Antônio Jorge Soares (1999, p. 110), três aspectos dessa análise serão destacados: 1) o momento exato em que a interrupção do assunto em tela ocorre (a pergunta, no Livro IV), 2) o momento em que ele é retomado (a resposta, no Livro V), e 3) a forma como o autor encaminha esse enredo. Como um construtor de pontes, ligando margens opostas, o filósofo ateniense desenhará convenientemente uma trajetória digna de trapezista, pois, após uma intrigante ação performática, o diálogo se encaixará com precisão na meta pretendida por ele. Por isso, serão explicitados os conectivos sintáticos e marcas de referenciação os quais são utilizados pelo mestre grego a fim de realizar essa manobra. A seguir, esses assuntos serão vislumbrados.

 

 

Os guardiões trazem a pureza na alma

 

Platão abre o Livro IV já com a questão mencionada anteriormente, a propósito da felicidade dos guardiões, nos termos em que se seguem:

 

Tomando a palavra, Adimanto perguntou: – Que dirás então em tua defesa, ó Sócrates, se alguém afirmar que não tornarás estes homens nada felizes, precisamente por culpa deles, uma vez que a cidade lhes pertence de facto, mas sem que eles usufruam qualquer bem da sua parte, como os outros, que possuem campos e constroem casas bonitas e grandes, para as quais adquirem mobiliário à altura, que fazem os seus sacrifícios aos deuses, recebem hóspedes e que têm, em especial, aquilo que há momentos referias, o ouro e prata e quanto se julgue que constitui a felicidade? Pura e simplesmente, dir-se-á que parecem uma espécie de guardiões assalariados instalados na cidade, sem fazerem mais nada senão estar de vigia.

– Sim – confirmei eu –, e ainda por cima ganham o seu sustento, mas não recebem salário nenhum além da alimentação, como os restantes, de tal modo que não lhes será lícito viajar por conta própria, se quiserem, nem dar dinheiro a cortesãs, nem efectuar, em qualquer outro lado que lhes apeteça, aquelas despesas que fazem os homens que são considerados felizes. Estas e outras queixas em grande número, deixaste-as ficar de fora da tua acusação.

– Mas acrescentem-se essas acusações também!

(PLATÃO, A República, IV, 419a-420a).

 

No final do Livro III, Sócrates vinha travando com Gláucon uma discussão a propósito das características das habitações dos guardiões. Sócrates informava a Gláucon que os guardiões escolhem o lugar da cidade

 

... onde acamparão melhor, de onde poderão conter perfeitamente os de dentro dela, se alguém não quiser obedecer às leis, e defender-se contra os de fora, se algum inimigo avançar como um lobo contra o rebanho. Depois de terem acampado e feito os devidos sacrifícios, que erijam as tendas.

(PLATÃO, A República, III, 415e).

 

E esse abrigo, diz Sócrates, protegerá os guardiões tanto no inverno quanto no verão. Em seguida, faz um importante esclarecimento a Gláucon, informando-lhe que aquelas habitações são para guardiões, “... e serão do tipo próprio de militares, e não de homens de negócios” (PLATÃO, A República, III, 415e). Visto que os demais cidadãos almejam muito mais. Os guardiões – em virtude de sua boa educação –, são capazes de enfrentar todas as agruras da vida. Por conta disso, Sócrates elenca:

 

Em primeiro lugar, nenhum possuirá quaisquer bens próprios, a não ser coisas de primeira necessidade; em seguida, nenhum terá habitação ou depósito algum, em que não possa entrar quem quiser. Quanto a víveres, de que necessitarem atletas guerreiros sóbrios e corajosos, ser-lhes-ão fixados pelos outros cidadãos, como salário da sua vigilância, em quantidade tal que não lhes sobre nem lhes falte para um ano. As suas refeições serão em comum, e em comunidade viverão, como soldados em campanha.

(PLATÃO, A República, III, 416d-416e).

 

Sócrates arrematará seu discurso a Gláucon contando-lhe que os guardiões não manuseiam a moeda do vulgo, porquanto a moeda dos guardiões é pura e eles a trazem sempre “... na sua alma” (PLATÃO, A República, III, 416e). Além do que, dirá Sócrates, a manipulação do ouro humano provoca crimes ímpios.

Adimanto assistia ao diálogo entre Sócrates e Gláucon, em um dado momento ele apresentou – não sem uma dose de ironia –, sua desconfiança em relação ao assenhoramento da felicidade por aqueles nobres servidores da cidade-Estado. O assunto levantado por ele não é tratado de imediato. A pergunta formulada por Adimanto fica postergada para enfrentamento futuro, porque Platão introduz mais uma de suas frequentes interrupções. E a forma como ele o faz é cheia de sutilezas. Sócrates, em um jogo cênico, diz (PLATÃO, A República, IV, 420b): “Perguntas então que diremos em nossa defesa?”. Nesse questionamento, Sócrates capciosamente inclui Gláucon como responsável também por encontrar uma resposta à questão provocada por Adimanto, muito embora a pergunta tivesse sido dirigida somente a ele, Sócrates. Para não deixar escapar o principal, Adimanto endossa e Sócrates continua (PLATÃO, A República, IV, 420b): “Seguindo pelas mesmas veredas, encontraremos, julgo eu, a resposta a dar.” E aí o personagem Sócrates começa a tergiversar: ornamentando o diálogo com meandros tais que provocam a desaproximação do exame da matéria suscitada por Adimanto. A felicidade dos guardiões, se é que seja plausível, só será retomada bem lá na frente.

Já no Livro V, Sócrates e Gláucon examinam a legislação que imputa um regramento todo especial aos guardiões. Como eles eram impedidos de possuírem bens materiais, concluirá Sócrates (PLATÃO, A República, V, 465b): “... gozarão da mais completa paz uns com os outros”, pois ficarão livres das dissensões,

 

... da lisonja aos ricos, visto serem pobres; das dificuldades e penas a que se é forçado para criar os filhos e juntar riquezas, para sustentar os criados, ora pedindo dinheiro emprestado, ora renegando dívidas, ora procurando dinheiro por todos os meios, para o colocar nas mãos das mulheres e dos servos, entregando-lhes a sua administração, e os vários e múltiplos trabalhos, ó amigo, que os homens sofrem em relação a estas questões, todos bem evidentes, ignóbeis e indignos de que se gastem palavras com eles.

(PLATÃO, A República, V, 465c).

 

Nota-se, portanto, que os debatedores se avizinharam decisivamente da matéria abordada por Adimanto quando este questionou a felicidade dos guardiões. Após uma explanação que dava conta das preocupações que os guardiões estariam livres, já que eram sustentados pela cidade-Estado a fim de desenvolverem excelentemente seus trabalhos, Sócrates, então, diz a Gláucon que os guardiões, após se livrarem daqueles compromissos afeitos aos demais cidadãos, estariam aptos a degustarem uma felicidade sem igual (PLATÃO, A República, V, 465d): “... viverão uma vida de maior bem-aventurança do que os bem-aventurados vencedores dos Jogos Olímpicos.” Ao ser indagado por Gláucon – que ainda não havia percebido  a garimpagem a qual Sócrates conduziu o diálogo –, como aquilo era possível, o personagem Sócrates responde:

 

– Esses só gozam de uma pequena parte da felicidade que é proporcionada aos nossos. É que a sua vitória é mais bela, e o sustento que lhes dá o Estado mais completo. A vitória que eles alcançam é a salvação de toda a cidade; eles mesmos e os seus filhos recebem, como coroa, a alimentação e todas as demais coisas necessárias para a vida; recebem honrarias da sua cidade, enquanto vivos, e, depois de mortos, cabe-lhes em sorte uma sepultura condigna.

– São belos prêmios.

– Lembras-te – perguntei eu – de que anteriormente alguém, não sei quem, nos censurou por não tornarmos os guardiões felizes, porque, sendo-lhes lícito possuir os bens dos outros cidadãos, nada tinham?

(PLATÃO, A República, V, 465e-466a).

 

Os vitoriosos nos jogos olímpicos são felizes; mais do que eles, os guardiões – esta é a conclusão de Sócrates. “Lembras-te de que anteriormente alguém... nos censurou por não tornarmos os guardiões felizes?”: ao se utilizar dessa frase, Sócrates relembra o momento em que Adimanto formulou a questão. Garante com esse recurso dois trunfos: a identificação do autor da provocação (Adimanto) e a confirmação de que os guardiões, pelo nobre exercício de suas funções, apropriam-se, sim, da tão ambicionada felicidade plena.

 

 

O início, o fim e o meio

 

Platão deixou uma obra magnífica que pode ser degustada de diversos modos pelos leitores. Consoante Reale e Antiseri (2017, p. 122): “Os escritos de Platão chegaram a nós na sua totalidade”. Não se pode imaginar a Filosofia sem esse mestre. Mesmo que o escritor não perceba influência desse filósofo nas obras as quais redige, quase que invariavelmente ela está lá. Não só na literatura, a presença de Platão é também notabilizada tanto na música, quanto no cinema. Essa maneira de contar uma história, esse estilo inconfundível com o qual o mestre de Atenas construiu suas obras, esse jeito de ir e vir, de flutuar, de divagar, de efetuar cortes acachapantes e retomar mais adiante, como se nada tivesse acontecido, sem perder o fio da meada, é próprio dele, deste homem: o fundador da Academia.

Conforme o dicionário Houaiss (2001, p. 826), contudo é uma “... conjunção coordenativa adversativa que indica contraste ou restrição na ligação de dois termos ou de duas orações de igual função”. Pois bem, a primeira palavra do romance Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro (s/d, p. 9), é exatamente esta: contudo. O escritor baiano inaugurou o seu belo romance assim: “Contudo, nunca foi bem estabelecida a primeira encarnação do Alferes José Francisco Brandão Galvão...”. De forma ousada (não diria original, porque na obra A República de Platão já se percebe a possibilidade de construção como essa), o competente ganhador do Prêmio Camões de 2008 anuncia uma declaração de oposição ou restrição a uma declaração feita anteriormente, mas que não é conhecida.

Em Pulp Fiction (EUA, 1995), o diretor Quentin Tarantino – que também é interprete e um dos roteiristas –, mata o protagonista da trama no meio do filme. No entanto, a última cena desse mesmo filme mostra o personagem que já havia sido morto saindo de uma lanchonete, com seu companheiro de trabalho, contente da vida, cheio de planos, descontraído, alegre como poucos. Na letra de Gîtâ, composição de Raul Seixas e Paulo Coelho, salta aos olhos uma aparente incongruência (Platão não acharia), um verso é repetido como uma verdade irretocável: “Eu sou o início, o fim e o meio”, nessa ordem. O escritor mineiro Fernando Sabino ensinava: “No fim tudo dá certo, e se não deu certo é porque ainda não chegou ao fim”.

Quentin Tarantino sabe; João Ubaldo Ribeiro, Fernando Sabino e Raul Seixas sabiam; Platão, antes de todos eles, era o homem que sabia demais.

 

 

Referências

DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução: Enrico Corvisieri. In: Descartes. [Os pensadores]. São Paulo: Nova Cultural, 2004. ISBN: 85-13-00851-6.

GÎTÂ. Letra disponível em: <https://www.letras.mus.br/raul-seixas/48312/>. Acesso em 05 de ago. de 2020.

HOUAISS. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Antônio Houaiss e Mauro Salles Villar. Elaborado no Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C Ltda. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. ISBN: 85-7302-383-X.

MARQUES, Carlos Euclides. Discurso filosófico I: livro didático. Design instrucional: Marina Cabeda Egger Moellwald. Palhoça: UnisulVirtual, 2012. ISBN: 978-85-7817-422-4.

PLATÃO. A República. Introdução, tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

PULP Fiction – Tempo de Violência. Direção: Quentin Tarantino. Roteiro: Quentin Tarantino, Roger Avary. Produção: Lawrence Bender. Elenco: John Travolta, Samuel L. Jackson, Uma Thurman, Bruce Willis, Harvey Keitel, Ving Rhames, Rosanna Arquette, Tim Roth, Amanda Plummer, Maria de Medeiros, Christopher Walken, Eric Stoltz, Bronagh Gallagher, Peter Greene, Burr Steers, Steve Buscemi, Quentin Tarantino, Frank Whaley, Alexis Arquette, Paul Calderon, Kathy Griffin, Dick Miller, Julia Sweeney, Lawrence Bender, Angela Jones, Joseph Pilato, Phil LaMarr, Duane Whitaker. Estados Unidos: Jersey Films/ Miramax Films, 1995. 149 min. Ficha técnica disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-10126/>. Acesso em 05 de ago. de 2020.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Filosofia: Antiguidade e Idade Média, vol. 1. Tradução: José Bortolini. Ed. rev. e ampl. São Paulo: Paulus, 2017. [Coleção Filosofia]. ISBN: 978-85-349-4191-4.

RIBEIRO, João Ubaldo. In: WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Wikimedia, 2020. Informações bibliográficas disponíveis em: < https://pt.wikipedia.org › wiki › João Ubaldo Ribeiro>. Acesso em 11 de ago. de 2020.

RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record/Altaya, s/d. [Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa, v. 4]. ISBN: 85-01-15904-2.

SABINO, Fernando. Citação disponível em: < https://www.pensador.com/frase/MTQxNDQ2/>. Acesso em 10 de ago. de 2020.

SEIXAS, Raul; COELHO, Paulo. In: WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Wikimedia, 2020. Identificação da autoria da composição Gîtâ disponível em: <https://pt.wikipedia.org › wiki › Gîtâ>. Acesso em 05 de ago. de 2020.

SOARES, Antônio Jorge. Dialética, educação e política: uma releitura de Platão. São Paulo: Cortez, 1999.

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Série Boas práticas- Filosofia na Idade Média 2020b

Sociedade disciplinar e sociedade de controle

PASSEIO VIRTUAL PELA EXPOSIÇÃO: DEUSES GREGOS - COLEÇÃO DO MUSEU PERGAMON DE BERLIM - FAAP 2006.