Série Boas produções - 2020-2 -Textos filosóficos antiigos e medievais

 

Os Guardiões poderão ser felizes no Estado proposto por

Platão em A República

Uma leitura filosófica

 

João Eduardo Chagas Sobral

 

O presente trabalho apresenta como objetivo dissertar sobre uma leitura e uma possível interpretação textual do recorte Os guardiões serão felizes?, parte do livro A República contido nos Livros IV (419a-420a) e V (465a). Entretanto, para fundamentar a explicação, foram visitados também, partes anteriores e posteriores a este recorte.

Ao longo da dissertação destaca-se ainda a estrutura do texto, onde são apontadas marcas intratextuais, imagens, hipóteses e desvios realizados pelo autor. A leitura foi realizada com base no livro, A República (ou da Justiça), tradução realizada por Edson Bini e publicado pela editora Edipro, 3ª edição em 2019.

A metodologia utilizada nesta leitura se caracterizada como dogmática e explicativa, já que questões históricas e de contexto não serão abordadas, restringindo-se, portanto, à estrutura interna do argumento contido no texto em si (MARQUES, 2012).

A obra A República trata sobre o entendimento do conceito de justiça, questão central do livro, e para tanto, propõe a construção racional de um Estado ideal, ação que faz parte de uma estratégia investigativa, justificada pela Imagem onde o autor mostra que é mais fácil para aqueles que não dispõe de uma visão aguda, identificar características em um objeto maior (PLATÃO, II, 368d).

A criação do Estado racional em Platão aparece como uma hipótese: “Se, portanto”, e segue, “... pudéssemos observar a geração ou formação de um Estado em teoria, não veríamos também a geração de sua justiça, bem como a de sua injustiça?” (PLATÃO, A República, II, 369a)

O Estado proposto por Platão se fundamenta na interdependência humana e na necessidade de construção de ambientes sociais que permitam suprir necessidades mútuas. Para ele, o indivíduo reconhece na partilha, o ganho pessoal, e a este ambiente comum “… dá-se o nome de cidade ou estado…” (Ibidem, 369c)

Segundo Platão (369e), o projeto de Estado inicia-se com o mínimo necessário, ou seja, quatro ou cinco homens, cada um contribuindo com seu trabalho e partilhando os dos outros. A partir deste pequeno grupo, o autor identifica e agrega novas necessidades, caminhando assim, gradualmente em direção a complexidade. A medida em que a Cidade-estado cresce, surge a necessidade de novos territórios e com ela a justificativa da constituição de um exército que possa defender e conquistar novos territórios.

Apoiado no princípio da especialização profissional, que preconiza que “… é impossível uma pessoa praticar bem muitas artes ou profissões...”, Platão justifica que não caberia ao cidadão desempenhar este papel, já que esta é uma atividade profissional específica e, portanto, dependeria de preparação própria. O autor chama estes profissionais de guardiões[1]. (Ibidem, 374a)

Cabe ao guardião estar constantemente vigilante, ser duro com os inimigos, dócil com os conterrâneos e obediente para com os governantes e para tanto, Platão atribui a educação a tarefa de cultivar estas naturezas conflitantes como a animosidade, o amor e a sabedoria (Ibidem, 375a- 375e).

Para justificar este argumento, Platão usa a imagem do comportamento “do cão de raça” e realiza um desvio no assunto:

 

Quando um cão vê que não conhece, se enraivece antes de se tornar vítima de qualquer mal. Mas quando conhece a pessoa, ele lhe dá as boas-vindas, mesmo que jamais tenha recebido alguma coisa boa dessa pessoa [ou tenha sido favorecido com sua bondade]. Nunca te surpreendeste com isso? (Ibidem, 376a)

 

Feita esta necessária introdução, adentramos no Livro IV, onde encontra-se a questão central para esta dissertação, qual seja, a felicidade dos guardiões. Platão inicia o Livro com uma marca intratextual, “neste momento”, para indicar um novo momento e retomada a um assunto, após uma pausa. Por intermédio de Adimanto, apresenta a hipótese da felicidade dos guardiões, em forma de pergunta”: “Serão eles felizes? Resposta que sofrerá um desvio e só será finalmente concluída no Livro V (PLATÃO, A República, IV, 419a).

No Livro IV o termo guardião adquire um significado distinto do Livro II, pois aqui encontra-se ligado ao conceito de governante, administrador, e função que Platão reafirma a necessidade de uma educação apropriada para que seja capaz de qualifica-lo a desempenhar esta atribuição fundamental ao Estado (Ibidem, 419a).

Para Platão os guardiões deveriam ser privados de possuir propriedades privadas ou salário e seu sustento deveria ser custeado pelo Estado,

 

[…] se desejarem fazer uma viagem particular para longe da cidade por sua conta não terão condições para tal; nada terão para presentear as suas amantes, nada para gastar das outras maneiras que desejarem, como as pessoas felizes fazem... (Ibidem, 420a)

 

São estes argumentos que põem em dúvida a felicidade daqueles que desempenhariam esta função de guardião. Contudo, Platão afirma que estes indivíduos seriam os mais felizes, mas que o Estado justo não visa premiar com a felicidade nenhuma classe em detrimento de outras, pois o Estado visa essencialmente “[…] tornar feliz toda a cidade na medida do possível” (Ibidem, 420b).

A expressão “a medida do possível” é aplicada porque seria uma tarefa difícil levar à felicidade todos e estes continuarem a desempenhar as suas profissões de forma eficiente.

Com a marca intratextual Pensávamos, Platão justifica porque o Estado não pode pensar na felicidade de nenhuma das classes que a compõe e resgata que, em passagens anteriores, pensava-se em encontrar a justiça em um Estado bem governado e a injustiça em um malgovernado, e por comparação veriam a justiça. No entanto, não se pode pensar um Estado bem governado moldando-o feliz. Quanto ao estado malgovernado, Platão usa mais uma marca intratextual para adiar a exposição e evitar mais um desvio, “O estado [oposto iremos] examinar em breve...” (Ibidem, 420c).

Como estratégia de justificação deste argumento, Platão cria mais uma imagem do artífice que ao pintar os olhos de uma estátua, reconhece, por experiência, não poder pintá-los com beleza destoante, pois se assim o fizesse, prejudicaria a percepção do todo. E por analogia afirma que “Também agora, não deves nos constranger a concedermos aos guardiões o tipo de felicidade que faria destes algo distinto dos guardiões” (Ibidem, 420e).

Em continuação, usa outras imagens de profissionais que, por terem tido regalias da felicidade, deixam de desempenhar bem as suas funções e que, para o bem do Estado, cabe persuadi-los a ser os mais competentes artífices.  Quanto aos guardiões, a situação é mais grave, pois se estes não conseguirem desempenhar bem as suas funções, levará a infelicidade para toda a cidade (Ibidem, 421a-421b).

 

Desta maneira, na medida em que a cidade se desenvolve e for bem governada, podemos delegar à natureza [a função] de fornecer a cada uma das classes a parcela de felicidade que lhe cabe (Ibidem, 421c).

 

Usando outra marca intratextual: “…um ponto aparentado a esse…” , indica ao leitor que irá realizar um outro desvio para tratar de assuntos como a corrupção profissional provocada pela riqueza e a pobreza, a vida comunitária, dentre outros, temas que reforçam a justificativa do argumento do Estado bem governado (Ibidem, 421c).

No Livro V, Platão retoma diretamente a questão da felicidade dos guardiões e usando outras marcas intratextual: “E isso é coerente com o que afirmamos anteriormente, pois dissemos em alguma oportunidade que...” ,  retoma a afirmação de que os guardiões não deveriam ter bens privados, nem poses e deveriam se contentar por serem sustentados pela sociedade (PLATÃO, A República, V, 464b).

Platão faz um paralelo entre os guardiões e os atletas vitoriosos dos jogos olímpicos e afirma que os guardiões viverão uma vida mais feliz do que estes últimos, visto que a vitória obtida pelos guardiões é a preservação do Estado e que seu prêmio é a manutenção das necessidades dele e de seus filhos, pois “Enquanto vivem, recebem recompensas de seu próprio Estado: e, ao morrerem, são objetos de um digno funeral” (Ibidem, 465e).

Por fim, usa a marca intratextual: Lembra-te e continua “… de que anteriormente alguém, no nosso diálogo me censurou que não havia tornado felizes os nossos guardiões, que embora tudo pertencessem nada tinham?” (Ibidem, 466a). 

Platão recorda também que tinha prometido retornar ao assunto quando surgisse um momento favorável, e naquele momento em que se tratou deste assunto, ele tinha dito que não era a preocupação do Estado fazer os guardiões felizes em particular, mas se esforçar para que todos os membros de Estado pudessem ser moldados para serem felizes (Ibidem, 466a). 

Em síntese, Platão responde ao questionamento inicial, qual seja, “Os guardiões serão felizes?”, respondendo que em um Estado bem governado, aqueles responsáveis e guardiões da felicidade de todos, são os mais felizes, pois promovem e vivem em um Estado aonde existe a justiça. 

 

Referências:

MARQUES, Carlos Euclides. Discurso filosófico I: livro didático. Palhoça: UnisulVirtual, 2012.

PLATÃO. A República (ou da Justiça). Tradução Edson Bini. 3. ed. São Paulo: Edipro, 2019.



[1] No Livro II, Platão se refere aos guardiões especificamente como soldados, em outros momentos, esta expressão recairá sobre os governantes da cidade.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Série Boas práticas- Filosofia na Idade Média 2020b

Sociedade disciplinar e sociedade de controle

PASSEIO VIRTUAL PELA EXPOSIÇÃO: DEUSES GREGOS - COLEÇÃO DO MUSEU PERGAMON DE BERLIM - FAAP 2006.