Série Boas produções - Textos filosóficos antigos - explicar e comentar textos

 

Passagem escolhida:

 

- E diante disso, Gláucon, com que base podemos sustentar ou argumentar que a injustiça, o desregramento e a realização de atos vergonhosos são vantajosos, uma vez que mesmo que alguém possa disso extrair mais dinheiro ou poder, isso tornará piores as pessoas?

- Não há como fazê-lo.

- E como sustentar que cometer injustiça sem ser descoberto e ser punido por isso é vantajoso ou proveitoso? Não se torna a pessoa que permanece sem ser detectada ainda pior, enquanto a parte animal daquela que é detectada é acalmada e domada, permitindo a liberação da parte dócil, de maneira que a alma toda se enquadra em sua melhor natureza, alcança moderação, justiça e sabedoria em uma condição mais valiosa do que a condição na qual se possui um corpo forte, belo, saudável, uma vez que a própria alma é mais valiosa do que o corpo?

- Com toda a certeza”, ele disse.

(PLATÃO, A República, IX, 591a).

 

Texto Explicativo

 

Moderação e Justiça como significação da felicidade

 

 Zilei Carolina da Silveira

 

A obra A República de Platão, ao dissertar por meio da definição do Estado ideal e justo e que seria tomado como referência do indivíduo justo, acaba por abordar vários outros temas que são originados e extrapolados durante o diálogo traçado pelo personagem de Sócrates e seus interlocutores. O presente trabalho se propõe a explicar de forma isolada um determinado trecho do livro IX, situado em 591a, utilizando para tanto tão somente conceitos já abarcados na mesma obra.

Os livros VIII e IX de A República tratam de descrever, por intermédio das explanações do personagem de Sócrates, um paralelo entre as formas de Estados existentes, incluindo aquela idealizada nos livros anteriores e suas características às do próprio homem. Isto, tendo como objetivo identificar dentre estes indivíduos assim caracterizados, qual seria o mais feliz.

Já ao final do Livro IX, na primeira parte do trecho escolhido para análise, Sócrates, retomando o que foi dito por Trasímaco, ao iniciar o diálogo, questiona Gláucon, a respeito da hipótese de que “injustiça, o desregramento e a realização de atos vergonhosos” seriam, de alguma forma, vantajosos. Tal questionamento leva em conta, neste ponto da obra, todo o traçado realizado anteriormente acerca das desvantagens de cada governo e como seus próprios males os levam à ruína. Neste caso, ao afirmar que “extrair mais dinheiro ou poder”, “tornará piores as pessoas”, refere-se à oligarquia ou ao homem oligárquico que tem a necessidade pelo dinheiro como um fim em si e acima de qualquer coisa. O que, segundo o que foi anteriormente exposto, levará fatalmente às formas posteriores e piores de governo, quer seja a democracia e a tirania.

Na sequência, Sócrates em referência à história do anel de Giges, retoma o ponto também já mencionado quanto à possibilidade de se cometer injustiça sem que seja descoberto ou punido. E, neste ponto, também argumenta que isso não traria benefícios ao malfeitor, colocando inclusive a “não descoberta” e a falta de punição ou correção como ainda menos vantajosa a este. Tal constatação pode ser observada sob alguns aspectos. O primeiro seria no sentido de que a descoberta e advertência forçaria, de certa forma um reconhecimento e correção de comportamento, o que traria benefícios ao próprio indivíduo. E, ainda, trazendo conceitos como a parte “animal” e “dócil” de sua alma, o personagem de Sócrates afirma que, neste contexto, a segunda abrandaria o comportamento da primeira, o que levaria o indivíduo a uma posição mais moderada, sábia e justa. Além disso, posteriormente afirma que tais características, que são aquelas da alma, são valoradas como superiores às qualidades do corpo, como beleza, força e a própria saúde.

Ou seja, este ponto específico da obra explicita que, mesmo que em segredo, as injustiças praticadas pelo indivíduo também não o são vantajosas, visto que ao praticá-las sua alma se afastaria cada vez mais do ideal de moderação, característica esta, de essencial importância no ideário de homem justo e feliz na visão do personagem de Sócrates.

 

Texto de Comentário

 

O homem justo é feliz? Uma resposta por meio da dialética

 

A obra A República, escrita por Platão em 376 a.C., ademais de ser o segundo de seus textos mais longos, tem um caráter que se pode avaliar como ambicioso. Isto porque ao tratar de um tema tão complexo como a “Justiça” acaba por enveredar por diversos outros como os conceitos de “bem” e “felicidade” e percorrendo, desta forma, por variados ramos da filosofia como a filosofia política, ética, estética, dentre outras.

Utilizando do recurso do diálogo e dos movimentos de idas e vindas a determinados temas, Platão, por meio do personagem caracterizado por Sócrates apresenta não a definição de justiça por meio da argumentação que perpassa boa parte da obra ao idealizar o Estado mais justo para, desta forma, chegar na definição de justiça e do indivíduo justo. E o tendo em vista, se este é o mais feliz.

É referente à característica do texto Platônico e ao método da dialética que, tomando como base um trecho específico apresentando em 591a do livro IX da obra A República, será avaliado de que forma o autor, por meio de personagem de Sócrates cumpre este objetivo.

Os livros VIII e IX são caracterizados pela dissertação acerca das características das formas de estado existentes e daquela idealizada por Sócrates, de forma a encontrar a caracterização de indivíduos que correspondam a estes mesmos atributos. Isto, com vistas a identificar qual seria o tipo de homem mais feliz, tendo como base suas qualidades e a da forma de Estado correspondente.

Neste ponto do texto selecionado, cabe pontuar que já foi definido o Estado justo como aquele em que cada indivíduo cumpre seu papel e, de forma análoga, o homem justo tal qual cada um de seus elementos internos ajam de forma apropriada. Também, foram explanadas todas as formas de Estado e o tipo de indivíduo correspondente, tendo chegado à pior forma de Estado como sendo a tirania e ao pior indivíduo como o tirano.

Ao retomar os questionamentos levantados no início do diálogo e contrapondo-os, o personagem de Sócrates utiliza puramente da dialética para, de forma conclusiva, indicar o oposto do que seu interlocutor havia afirmado acerca da justiça e acerca da felicidade do homem justo. Isto porque por meio deste recurso que, utilizado durante todo diálogo, há agora fundamentos já definidos e, inclusive, acatados por seus interlocutores e que servirão como base para sua argumentação, não tendo os participantes do diálogo como negar sua constatação ou mesmo realizar novas objeções ao que se conclui, questionando de forma retórica que:

 

Não se torna a pessoa que permanece sem ser detectada ainda pior, enquanto a parte animal daquela que é detectada é acalmada e domada, permitindo a liberação da parte dócil, de maneira que a alma toda se enquadra em sua melhor natureza, alcança moderação, justiça e sabedoria em uma condição mais valiosa do que a condição na qual se possui um corpo forte, belo, saudável, uma vez que a própria alma é mais valiosa do que o corpo?”. (PLATÃO, A República, IX, 591a).

 

O texto escolhido traz uma das principais respostas aos questionamentos realizados no início da obra acerca, principalmente, da vantagem ou desvantagem em ser um homem justo. O que, por meio da dialética, não só no referido trecho como na definição dos conceitos que o fundamentam mostrou ser possível corroborar o que o personagem de Sócrates defendia.

 

Referências

PLATÃO. A República [livro eletrônico]. tradução, textos complementares e notas Edson Bini – São Paulo: Edipro, 2020.

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