Série Boas produções Textos filosóficos antigos e medievais 2020b Explicação e comentário
Anotações sobre a educação na República platônica
Bruno Nunes Batista
Obra
capital da Filosofia Antiga e contribuição que se alastra no âmbito da Teoria
do Conhecimento, da Metafísica, da Política, da Estética, da Ontologia e da
Ética, A República, de Platão,
tornou-se de fato um texto monumental para compreender a tradição filosófica
ocidental. Ao longo dos seus livros, as nuances são inúmeras e as entradas
múltiplas, de forma que um resumo geral do que o filósofo grego quis dizer ao
longo dos seus dez livros é uma tarefa tanto impossível quanto lastimável, haja
visto que esse clássico deve ser lido minuciosamente, pois cada parágrafo nos
reserva um interior de possibilidades. Consequentemente, ao analista cabe
realizar escolhas e estabelecer procedimentos, para que assim possa apreender
nos detalhes o que Platão estava, com efeito, a dizer. Este é o objetivo deste
pequeno ensaio. Tomando por base uma passagem do Livro IX, na qual a educação
das crianças na cidade ideal é discutida, competir-me-á explicar com maiores
detalhes a generalidade da qual Platão quis dar conta. Para tanto, valer-me-ei
dos princípios da explicação de um texto filosófico definidos por Folscheid e
Winenburger (2006).
Primeiramente,
o trecho que me interessa se materializou no final do clássico platônico (A República, IX, 590a-e). Ao discutir
sobre da justa cidade, em que a divisão de tarefas é condição de possibilidade
para tanto, Sócrates prescreve a necessidade de governar a juventude desde a
mais tenra idade:
E bem assim a maneira de mandar nas crianças, nas as
deixando em liberdade, até termos organizado na sua alma, como na cidade, uma
constituição na sua alma, como na cidade, uma constituição, e, depois de termos
cultivado o que elas têm de melhor, pelo que temos de equivalente,
instauraremos nelas um guarda e chefe semelhante a nós, para fazer as nossas
vezes, e só então as deixamos livres. (A
República, IX, 590e)
Como
explicar a contento tal passagem? Operando uma análise a partir de Folscheid e
Winenburger (2006), caber-me-ia descrever o que Platão realmente disse,
processo passível de ser feito por intermédio da exposição do tema e da tese do
texto, acompanhados da interrogação sobre o que o raciocínio põe em discussão;
em outras palavras, “O objetivo é quebrar o osso do texto para retirar a medula
substancial” (FOLSCHEID; WINENBURGER, 2006).
Com
esses pressupostos em mente, eu diria que, em primeiro lugar, o trecho 590e do
nono Livro d´A República trata do
modelo educacional a ser disposto no ideal de cidade justa perspectiva por
Platão; esse é, de fato, o tema central. Mas como construí-lo? Segundo a
exposição da tese afirmada pelo nosso autor, as crianças, uma vez nascidas nesse
contexto, não pertencem à família, mas ao Estado, que, ao colocá-las em
condições igualitárias num protótipo que facilmente um leitor apresado tomaria
como uma escola, realizará uma longa tutela a fim de classificar tais
indivíduos segundo suas aptidões e qualidades (GHIRALDELLI, 2011). Pois bem, o
que Platão está colocando em questão nesse deslocamento não é apenas a semente
para uma posterior política de eugenia, mas também e sobretudo, a ideia de que
uma cidade com justiça, dividida em três partes e com tarefas minuciosamente
endereçadas a cada um dependerá efetivamente de um gradeamento prévio, cujo
sucesso depende não apenas de uma mão forte dos guardiões da cidade como do
“sequestro” das crianças do seu lar desde muito cedo (PEREIRA, 1997). Uma ação
leva a outra, portanto.
Dessa
pequena passagem, duas conclusões podem ser extraídas. A primeira – e, talvez,
principal – é que lida isoladamente, sem o apoio tanto dos livros anteriores
como mesmo de especialistas da área da Filosofia da Educação, torna-se inócua
ou aparentemente simples. A outra conclusão, que encaminharia quiçá para um
novo texto é que se da concretização da justiça depende uma extenuante seleção
prévia, não seria a República,
sobremaneira, um texto de Educação?
Referências
FOLSCHEID, D.; WUNENBURGER, J. Metodologia filosófica. São Paulo:
Martins Fonte, 2006.
GHIRALDELLI, P. Dossiê Platão. São Paulo: Universo dos
Livros, 2011.
PEREIRA, M. H. R. Introdução. In:
PLATÃO. A República. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1997.
PLATÃO. A República. São Paulo: Editora Martin Claret, 2000.
Noções de
infância na República
E bem assim a maneira de mandar nas crianças, nas as deixando em
liberdade, até termos organizado na sua alma, como na cidade, uma constituição
na sua alma, como na cidade, uma constituição, e, depois de termos cultivado o
que elas têm de melhor, pelo que temos de equivalente, instauraremos nelas um
guarda e chefe semelhante a nós, para fazer as nossas vezes, e só então as
deixamos livres. (PLATÃO, A República, IX, 590a-e).
Dentre
as muitas maneiras possíveis (e profícuas) de examinar essa passagem do Livro
IX d´A República, com a qual abro
este breve texto, uma problematização me parece digna de questão: em que
condições Platão pensa a noção do que hoje conhecemos por infância?
Ora,
sabemos que o papel das crianças na cidade ideal foi redigido minuciosamente
pelo filósofo grego ao longo da sua obra magna. Nesse sentido, não nos é
surpresa que, para este pensador, extrair a juventude da sua família e
modelá-la segundo a ideia de justiça é uma condição obrigatória para levar a
bom termo seu projeto. Por fim, também sabemos, como explica Pereira (1997) e
Ghiraldelli (2011), que a definição das incumbências de cada um, a partir do
que lhe é mais elevado em sua alma, deve ter por necessidade apoio do Estado,
que classifica e hierarquiza. No entanto, para além dessa noção de uma criança
como utilidade para a cidade, haveria certamente uma percepção de Platão a
respeito do período infantil, percepção essa que poderia justificar sua
arquitetura educacional. Mas para entender tal perspectiva, escolhas metodológicas
devem ser feitas.
Primeiramente,
faremos uso do procedimento ao qual Folscheid e Winenburger (2006) definem como
comentário. Para esses autores,
trata-se esse de uma técnica que interroga um texto para além dele mesmo,
abarcando o contexto da obra através de certas especulações. Essa atividade
supõe, porém, “[...] conhecimentos precisos, lentamente adquiridos e bem
assimilados” (FOLSCHEID; WINENBURGER, 2006, p. 50). Com efeito, isso significa
dar um passo adiante e trazer para o diálogo especialistas em determinada
corrente filosófica. Desse modo, como estamos tratando da interseção entre
Platão e infância, o artigo de Kohan (2003) parece um recurso interessante não
só para comentar a passagem introdutória em tela como, também, interrogar “[...]
sobre o que o autor em questão disse de verdadeiro” (FOLSCHEID; WINENBURGER,
2006, p. 49).
Pois
bem, o problema que deve conduzir a nosso comentário é o seguinte: por que as
crianças não devem estar em liberdade? Seguindo o raciocínio construído com admirável
erudição por Kohan (2003), a resposta tal questionamento pode ser encontrado no
modo como Platão concebe a infância, uma característica encontrada em outros
diálogos para além d´A República,
como o Górgias, Alcebíades e As Leis.
Através da síntese levada a cabo por Kohan (2003) desses textos, encontraríamos
em Platão quatro pontas de lança que servem como fundamentos para definirmos a
maneira como a infância é representada nos textos platônicos.
Em
primeiro lugar, Platão enxergaria a infância como possibilidade, isto é, como
matéria-prima para a construção de uma cidade; por isso, entendemos a tutela
permanente a ser feita pelo Estado, haja visto que a infância pode ser o
espelho do futuro – para o bem ou para o mal. Em segundo lugar, o fundador da
Academia concebe a infância num sentido de inferioridade, posto que nenhuma
criança se equipara ao cidadão adulto: ela pertence, logo, à classe dos
escravos, mulheres, estrangeiros, etc. Em terceiro lugar, uma criança, em si
mesma, é supérflua, não sendo necessária à pólis;
deve, portanto, ser transformado e jamais deixada à revelia, justificando assim
o argumento do Livro IX segundo o qual a liberdade à infância não deve ser
concedida. Por último, mas não menos importante, a infância é material de
política, futuro da cidade ideal aventada pela mais nobre Justiça: cabe ao
Estado educar as crianças e extrair de cada uma delas o que há de mais elevado
em cada uma dessas almas. Como explica Kohan (2003, p. 25),
Por um lado, educa-se para
desenvolver certas disposições que existem em estado bruto, em potência, no
sujeito a educar; por outro lado, educa-se para conformar, para dar forma,
nesse sujeito, a um modelo prescritivo, que foi estabelecido previamente. A
educação é entendida como tarefa moral, normativa, como o ajustar o que é a um
dever ser. Na medida em que a normatividade que orienta a educação da República
é um modelo de pólis justa, trata-se
também ou, sobretudo, de uma normatividade e de uma tarefa políticas.
Do
deslocamento feito nesse texto, poderíamos concluir alguns raciocínios
interessantíssimos. Um deles é que entender a maneira através da qual se pensa
a educação n´A República não pode ser
dissociada das representações (e distinções) que o célebre filósofo possuía
acerca da infância. Nesse sentido, os quatro traços principais identificados
por Kohan (2003) acerca da noção do período infantil na obra platônica nos
trazem elementos que comprovam a excelência da arquitetura política aventada n´A República. A cidade justa e ideal é um
projeto para o futuro, e o futuro está reservado às crianças: urge que o Estado
lhes dê atenção especial. No entanto, a percepção de uma criança enquanto ser inferior ou tábula rasa demanda uma retirada dela da sua família o quanto antes
for possível, para que se possa modulá-la, classificá-la e direcioná-la para as
tarefas necessárias ao desenvolvimento do Bem na cidade – sem liberdade,
portanto. Pois bem, com esses argumentos Platão não apenas amarrou com
excelência os fios do seu mais expressivo texto; compartilhou, sobretudo, uma
perspectiva para pensar a educação que, mesmo na contemporaneidade, talvez
ainda não conseguimos ultrapassar.
Referências
FOLSCHEID, D.; WUNENBURGER, J. Metodologia filosófica. São Paulo:
Martins Fonte, 2006.
GHIRALDELLI, P. Dossiê Platão. São Paulo: Universo dos
Livros, 2011.
KOHAN, W. Infância e educação em
Platão. Educação e Pesquisa, São
Paulo, v. 29, n. 1, p. 11-26, jan.-jul. 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ep/v29n1/a02v29n1.pdf.
Acesso em: 15. Ago. 2020.
PEREIRA, M. H. R. Introdução. In:
PLATÃO. A República. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1997.
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