Série Boas práticas - Filosofia, Educação e Sociedade (2022-1)
Eis um dos melhores textos produzidos na Unidade de Aprendizagem Filosofia, Educação e Sociedade.
A pedagogia essencialista de Platão:
o caminho para
atingir a ideia do bem
Edvaldo Nazareno Carvalho
Faria[1]
Todo povo que atinge um certo grau de
desenvolvimento sente-se naturalmente inclinado à prática da educação. Ela é o
princípio por meio do qual a comunidade humana conserva e transmite a sua
peculiaridade física e espiritual. (JAEGER, 2013, p. 1).
Este
texto cuidará brevemente da evocação de uma concepção filosófica, na seara
educacional, defendida por Platão, a qual recebeu a denominação de pedagogia
essencialista. Para tanto, será trazida nesta reflexão um fragmento da obra do
referido filósofo pinçado de sua obra A
República, do Livro VII, especificamente o trecho compreendido entre as
notações 517b e 518d. Serão interpretadas com suficiente concisão as ideias
contidas no fragmento à luz dos fundamentos amparados pela perspectiva
essencialista.
Há
um esclarecimento pontual feito por Trevor J. Saunders (KRAUT, 2013, p. 557)
que posiciona o leitor confortavelmente diante da leitura do fragmento
mencionado acima: “... O Livro VII como um todo é dedicado à educação...”. Amalgamada
a isso, tem-se também outra explicação importante, desta feita de iniciativa de
Luc Ferry (2018, p. 91), a propósito da defesa desfechada por Platão concernente
à teoria da anamnese, que vem a ser:
“... a reminiscência das ideias com as quais nossa alma, segundo ele, esteve em
contato antes de encarnar em nosso corpo ao virmos ao mundo”. E segundo Dante
Carvalho Targa (2015, p. 14), a contribuição de Platão no campo da educação
passa pela teoria das ideias, a qual reconhece que “... a essência de cada
coisa pertence ao mundo suprassensível, sendo a nossa realidade uma cópia ou
reflexo do mundo das ideias”. E mais, “... se há uma essência para as coisas,
há também uma essência do homem e, portanto, um modelo ideal a ser seguida pela
educação”. Ao fim, de acordo com essa perspectiva, tem-se uma conclusão óbvia:
“... a educação consiste em realizar o que o homem deve vir a ser” (TARGA, 2015,
p. 15).
Todo
o andamento do diálogo contido no fragmento mencionado acima reflete os
fundamentos da concepção pedagógica essencialista. Veja, por conseguinte, as
imagens reproduzidas por Platão (2018, p. 268): “A caverna-prisão é o mundo das
coisas visíveis”. Ou seja, é o mundo dos homens, do cotidiano das pessoas, daquele
em que as sensações ludibriam incansavelmente seus moradores. Observe, em seguida,
a contundência da denúncia que faz o filósofo: “... a luz do fogo que ali
existe é o Sol”. Note, o filósofo está dizendo que aqueles homens estão sendo
tapeados, pois o verdadeiro Sol está lá fora; mas esse homem passivo,
desprovido de iniciativa, investido de menoridade
– para usar uma expressão própria de Kant (2013, p. 63), que a elaborou no
século XVIII – se contenta com um substituto menos ardoroso, carente de luz,
apaniguado de sombra. Atente para a analogia que o filósofo propõe, com muita
pertinência: “... e não me terás compreendido mal se interpretares a subida
para o mundo lá de cima e a contemplação das coisas que ali se encontram com a
ascensão da alma para a região inteligível”. Esse trecho é demasiadamente
auto-explicativo. Platão desenha dois mundos distintos, um representando o
mundo sensível e o outro o das ideias (o mundo inteligível). A ideia do bem é
noticiada por Platão de modo especial: “... no mundo inteligível a última coisa
que se percebe é a ideia do bem, e isso com grande esforço”. Platão parece
sinalizar que essa colheita só é auferida após um longo período de educação
pedagógica. Só mesmo para os abnegados. A preciosidade de que ele fala é
insuperável, porquanto “... ela é a causa de todas as coisas retas e belas...
no mundo visível e fonte imediata da verdade e do conhecimento no inteligível”.
E possibilitará plenitude a “... quem deseje proceder sabiamente em sua vida
privada ou pública”.
Platão
acredita que, por terem acessado o mundo inteligível e dado de frente com a ideia
do bem não deixariam jamais de serem beneficiados por essa dádiva, pois “...
aqueles que se elevaram a tais alturas desistem de se ocupar das coisas humanas
e as suas almas aspiram sem cessar a instalar-se nas alturas” (PLATÃO, 2000, p.
228). A pedagogia platônica não abandona esta premissa: são dois mundos bem
diferentes, o da luz e o das trevas. De forma didática, o filósofo expõe uma
imagem que fica límpida na mente do leitor: “... um homem sensato lembrar-se-á
de que os olhos podem ser perturbados de duas maneiras e por duas causas
opostas: pela passagem da luz à escuridão e pela da escuridão à luz” (PLATÃO,
2000, p. 229). Para sair da escuridão o homem precisa se esforçar, educar-se de
modo adequado, para entrar de vez no território da luminosidade.
Os
elementos fundamentais que promoverão o aprendizado já estão intrínsecos na
alma de todos os homens. Essa é a certeza inabalável do filósofo ateniense. Não
é preciso injetar coisa alguma na alma do homem, pois sua alma já detém os
componentes imprescindíveis, necessário se torna apenas despertá-la com um método
apropriado, uma vez que
o poder do aprendizado está presente na
alma de todos e que o instrumento do aprendizado de cada um é como um olho que
não é capaz de ser girado da escuridão para a luz sem que se gire o corpo
inteiro. Não é possível girar esse instrumento a partir do que está vindo ao ser (do que está sendo gerado) sem efetuar um
giro axial da alma inteira até que essa se capacite a suportar contemplar o ser e o mais resplandecente entre os seres,
a saber, aquele que dizemos que é o bem.
(PLATÃO, 2019, p. 329).
Após
a apresentação das convicções elencadas acima, Platão conclui que sua pedagogia
essencialista entra em cena, porquanto, o que falta agora para o êxito da sua
proposta pedagógica é a adoção de um método confiável para conduzir o aprendiz
à seara da terra prometida. Assim, ele enuncia:
A conclusão é que disso poderia haver uma
arte, ou seja, desse giro, e como pode a alma mais fácil e eficientemente ser
levada a realizá-lo. Não é a arte de introduzir visão na alma. Tem-se como
certo que a visão já está presente na alma, mas esta não a dirige corretamente
e não arroja o seu olhar para onde deveria; trata-se da arte de redirigir a
visão. (PLATÃO, 2019, p. 329).
O
adágio diz que todos os caminhos levam a
Roma. Poder-se-ia indagar: Dentre eles, qual seria o melhor caminho? Na
arte da educação pedagógica há, também, situação similar. Há diversas propostas
que tratam dessa questão. Platão apresentou a sua, e como ato inaugural ele revela:
começando bem cedo, com as crianças. Na sua concepção – diferentemente do que viria
a pregar no século XVII o filósofo John Locke (REALE & ANTISERI, 2017, vol.
2, p. 413) –, a mente da criança não é uma tabula
rasa, um papel em branco, mas potencialmente túrgida de elementos basilares
para ser trabalhados: de fato, com grande esforço; a fim de atingir o mais
maravilhoso de todos os tesouros: a ideia do bem. E, conseguintemente, se assim
o desejar, tendo esse trunfo em suas mãos, o homem detentor desse colosso
poderá usufruir de uma vida plena de felicidade.
REFERÊNCIAS
FERRY, Luc;
CAPELIER, Claude. A mais bela história
da filosofia. Tradução: Clóvis Marques. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2018. ISBN: 978-85-7432-144-8.
JAEGER,
Werner Wilhelm. Paideia: a formação
do homem grego. Tradução: Artur M. Parreira. [Adaptação do texto para a edição
brasileira: Monica Stahel; revisão do texto grego: Gilson César Cardoso de
Souza]. 6. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013. (Clássicos WMF).
ISBN: 978-85-7827-670-6.
KANT,
Immanuel. Immanuel Kant: textos
seletos. Introdução: Emmanuel Carneiro Leão. Tradução: Raimundo Vier e Floriano
de Sousa Fernandes. Cap. 4: Resposta à
pergunta: Que é “Esclarecimento”? 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
(Coleção Textos Filosóficos). ISBN: 978-85-326-3192-3.
KRAUT, Richard
(org.). Platão. Cap. 15: O pensamento político tardio de Platão,
de Trevor J. Saunders. Tradução: Saulo Krieger. São Paulo: Ideias & Letras,
2013. ISBN: 978-85-65893-13-8.
LOCKE, John. In:
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Filosofia: idade
moderna, vol. 2. Tradução: José Bortolini. Edição revista e ampliada. São
Paulo: Paulus, 2017. (Coleção Filosofia). ISBN: 978-85-349-4453-3.
PLATÃO. A República. Tradução: Enrico
Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2000. ISBN: 85-351-1004-6.
_____ A República. Tradução: Leonel
Vallandro. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. ISBN: 9788520942727.
_____ A República (ou Da justiça). Tradução,
textos adicionais e notas: Edson Bini. 3. ed. São Paulo: Edipro, 2019.
(Clássicos Edipro). ISBN: 978-85-521-0074-4.
[1] Edvaldo Faria é formado em agrimensura pela Universidade
Federal de Viçosa (UFV), em matemática (licenciatura) pela Universidade do Sul
de Santa Catarina (Unisul) e graduando de Filosofia (bacharelado) também pela
Unisul, já tendo concluído três quartos do curso. Em breve, pela Aragem
Editora, publicará seu primeiro romance.
Comentários
Postar um comentário