Série Boas Práticas - UA Filosofia, Educação e Sociedade (2022-a)

     EIS MAIS UM DOS MELHORES ESCRITOS PRODUZIDOS PARA A UNIDADE DE APRENDIZAGEM FILOSOFIA, EDUCAÇÃO E SOCIEDADE (2022-a)

A pedagogia essencialista de Platão

 como trampolim para a pedagogia do oprimido de Paulo Freire

 

Edvaldo Nazareno Carvalho Faria[1]

 

... a cultura não é o que alguns imaginam que seja. Eles afirmam que pode introduzir a ciência numa alma que não a possui, como se comunica a visão aos que não vêem. (PLATÃO, 2006, Parte II, p. 229).

O grande problema está em como poderão os oprimidos, que “hospedam” o opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, da sua libertação. (FREIRE, 1987, p. 32, apud TARGA, 2015, p. 137).  

 

A filosofia de Platão é um marco em virtude de sua imponência. Que seus iguais o apontem com elogios desbragados ou, ao contrário, o façam com redobradas críticas devastadoras, sua filosofia quase sempre será o ponto de referência para receber aplausos ou deméritos ao longo da história. Concordem ou não com seus pontos de vista, na maioria das vezes, é daquela seara que filósofos de todos os quadrantes do mundo partem para realizar os seus trabalhos. O pensador brasileiro Paulo Freire fez também esse exercício. Um punhado de suas reflexões coincide com as ideias defendidas pelo mestre grego. É como se o ateniense estivesse pregando uma educação básica, em pleno século XX, para jovens adultos. O propósito deste texto será o de examinar a posição do filósofo brasileiro com a proposta pedagógica manifestada pelo grego no fragmento trabalhado no Bloco 1.

Há uma dissonância entre as duas pedagogias da educação, a de Platão e a de Freire. A do grego – pedagogia essencialista – guia por uma noção pré-determinada do ser humano, definida por ele de essência; por sua vez, a do brasileiro – pedagogia do oprimido – baliza seu método tendo em mente que o homem precisa ter sua consciência despertada para o que ocorre em sua volta e a partir daí passar a agir de modo a alcançar sua própria libertação. Segundo Targa (2015, p. 128), o pensamento de Freire harmoniza vertentes diversas, tais como: o existencialismo cristão, o materialismo histórico, a dialética hegeliana e a fenomenologia. Considerando o existencialismo, é importante trazer à luz declarações do filósofo Sartre que, com certeza, abasteceu o pensamento de Freire de modo implacável. Ao contrário de Platão, que via o homem portador de uma essência pré-determinada, Sartre, com seu viés marxista, vai por um caminho oposto e vaticina categórico: “... a existência precede a essência...” (SARTRE, 2014, p. 23). “Que significa, aqui, que a existência precede a essência? Significa que o homem existe primeiro, se encontra, surge no mundo, e se define em seguida” (SARTRE, 2014, p. 25). Em que pese a discordância entre o ateniense e o recifense mencionada acima, procurar-se-á, a seguir, encontrar pontos em comum entre essas duas perspectivas de educação.

A primeira motivação compartilhada pelos dois pensadores, Platão e Freire, é o fruto a ser colhido. O resultado pretendido por ambos é um só: que o militante da pedagogia atinja o campo da liberdade. E para atingir o alvo pretendido, essas pedagogias fazem um inventário que guarda muita proximidade, o qual aponta o homem como um ser inacabado, e que precisa de um direcionamento para sua vida, a fim de se obter entendimento e compreensão das coisas que subsistem à sua volta e, a partir daí, tomar providências necessárias até atingir a sua libertação. Sair da atitude conformista e passiva para a do arrojo e transformação. Neste ponto é inevitável a lembrança das palavras de Karl Marx (RUSSEL, 2015, Livro 3, p. 355): “... Os filósofos nada mais fizeram do que interpretar o mundo de diferentes maneiras, quando a verdadeira tarefa consiste em modificá-lo”. É com essa ideia na cabeça – Platão, antes de Marx; Freire, depois – que os dois filósofos pedagogos encetam suas práticas, a fim de conduzir o aprendiz até o máximo de suas possibilidades.

A partir de um determinado ponto em sua vida, o oprimido começa sua caminhada em busca da maioridade da qual falava Kant (2013, p. 64): “... A imensa maioria da humanidade... considera a passagem à maioridade difícil...”. E Platão, antes de Kant, já afirmava que necessita de grande esforço para que os frutos venham abarrotados de inigualável contentamento. Esse empenho na caminhada terá que ser realizado pelo próprio interessado, com seus próprios meios, com ferramentas as quais ele possa manipular, tendo o seu viver como referência direta, pois é ali naquela cultura que aquele homem vive. Aquela malfadada educação até então imposta a eles, de cima para baixo, do “sábio” para os destituídos de saber (como parece impingir neles essa alcunha que é oriunda da educação tradicional), não existirá mais. A educação doravante será apropriada por eles de forma não mais verticalizada, e sim horizontal, onde todos estarão no mesmo palco do aprendizado, no mesmo nível de atuação, pois o professor (que desta feita atuará como mediador) e os aprendizes discutirão temas atinentes à cultura deles, de assuntos os quais interessam enfaticamente aos residentes daquele cotidiano, a fim de poderem alcançar o que todos os homens almejam: a liberdade para decidir os rumos de suas vidas, com altivez e sabedoria.

A pedagogia essencialista de Platão e a pedagogia do oprimido de Freire guardam uma semelhança extraordinária: não há forma de transmitir o saber alijando o diálogo, pois este é o esteio daquelas pedagogias. Sem diálogo, não há jeito de levar o aprendizado ao ponto mais elevado do percurso a ser feito. Essa troca de impressões entre os envolvidos na sistemática é que dará sustentabilidade ao método. E os frutos desse trabalho virão paulatinamente, à medida que o exercício da conversação é praticado.

A pedagogia de Paulo Freire começa com o adulto. Esse homem abre uma clareira em torno de si mesmo. Ele olha em volta, não mais com os olhos de outrora, mas com olhos de filósofo: com espanto, com entusiasmo, com admiração. Como se estivesse vendo pela primeira vez aqueles elementos que o rodeiam. Faz-se, então, o inventário da própria vida. A partir dali segue-se a viagem; mas desta feita, com rumo e itinerário traçado, calculado, em busca da seara que lhe garanta liberdade e consequentemente felicidade, que será conseguida, como proclamava Platão, a duras penas. Poder-se-ia acrescentar, numa tentativa de dar uma imagem a esse esforço do qual fala o filósofo ateniense: com sangue, suor e lágrima.

A despeito de Platão praticar o seu método a partir das crianças até atingir a idade adulta e Freire trabalhar a sua pedagogia com pessoas já adultas, não parece destoar a compreensão que ambos os pensadores tinham a propósito do potencial que os aprendizes encerravam em suas mentes, antes de serem despertados para a caminhada da libertação. Exatamente por ser o homem inacabado é que se abre uma frente de trabalho nas duas perspectivas de educação, com o propósito de conduzi-lo pela estrada até o território onde grassa o sadio contentamento. Muda o ponto de partida de cada pensador – um inicia com as crianças; o outro, com os adultos –, mas o intento de ambos é nobre e inatacável: a conquista da liberdade e da felicidade. Não foi para isto que o homem veio? Ser livre e ser feliz? A proposta é ousada, mas por si só vale à pena tentar realizar essa utopia.

 

 

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. In: TARGA, Dante Carvalho. Filosofia, educação e sociedade: livro didático. Design instrucional: Marina Melhado Gomes da Silva. Palhoça: UnisulVirtual, 2015.

KANT, Immanuel. Immanuel Kant: textos seletos. Introdução: Emmanuel Carneiro Leão. Tradução: Raimundo Vier e Floriano de Sousa Fernandes. Cap. 4: Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento”? (Aufklärung). 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. (Coleção Textos Filosóficos). ISBN: 978-85-326-3192-3. 

MARX, Karl. In: RUSSELL, Bertrand. História da filosofia occidental – Livro 3: A filosofia moderna. Tradução: Hugo Langone. 1. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. ISBN: 978-85-209-2150-0.

PLATÃO. A República. Tradução e organização editorial: Ciro Mioranza; diagramação: Vitório Bettini; revisão: André Campos Mesquita; colaborador: Luciano Oliveira Dias. São Paulo: Editora Escala, 2006. (Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal, vol. 5). ISBN: 978-85-755-6330-4.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Apresentação e notas: Arlette Elkaïm-Sartre; tradução: João Batista Kreuch. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. (Coleção Textos Filosóficos). ISBN: 978-85-326-4012-3.



[1] Edvaldo Faria é formado em agrimensura pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), em matemática (licenciatura) pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) e graduando de Filosofia (bacharelado) também pela Unisul, já tendo concluído três quartos do curso. Em breve, pela Aragem Editora, publicará seu primeiro romance

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