Série Boas Práticas - Reflexões sobre o Homem na Filosofia (2022-a) - Acadêmico: Alexandre Antonio Bruno da Silva -A moral em Nietzsche
A MORAL EM NIETZSCHE
Alexandre Antonio
Bruno da Silva[1]
Nós, homens do conhecimento,
não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos – e não sem motivo. Nunca
nos procuramos: como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos? Com razão
alguém disse: ‘onde estiver teu tesouro, estará também teu coração’. Nosso
tesouro está onde estão as colmeias do nosso conhecimento. Estamos sempre a
caminho delas (...), tendo no coração apenas um propósito – levar algo ‘para
casa’ (...) nas experiências presentes, receio, estamos sempre ‘ausentes’:
nelas não temos nosso coração – para elas não temos ouvidos. (NIETZSCHE, Genealogia
da Moral, Prólogo, §1)
1. Introdução
Em suas principais obras, Nietzsche
define as bases de seu pensamento acerca da Moral. Pela linguagem utilizada,
pelo fundamento inovador e pela própria complexidade dos conceitos, tais ideias,
ao longo do tempo, possibilitaram uma série de interpretações distintas. Não há como escrever sobre Nietzsche sem tratar
da sua filosofia moral. Aquele que conhece a sua obra sabe da importância da
sua crítica à moral vigente em seu tempo e dos efeitos nefastos que esta tinha
sobre o homem.
Segundo Nietzsche, em
seus estudos acerca da moral, o mundo humano é um mundo de ações. As ações
morais constituem grande parte das ações humanas no mundo. Estas ações morais
são determinadas por representações de valor relativas a uma tábua de valores
do Bem e do Mal. As representações de valor quanto ao Bem e ao Mal de cada ação
determinam, pois, em sentido fundamental, as ações humanas no mundo[2].
Nietzsche sabia que, o já
necessário estudo mais aprofundado acerca da moral, iria expor verdades que,
por vezes, é melhor não saber. Para ele, uma fé cega na bondade da natureza
humana, uma aversão à análise das ações humanas, um pudor frente à nudez da
alma, podem ser mais desejáveis para a felicidade geral de um homem do que uma
verdadeira penetração psicológica.
A crença no Bem, em
homens e ações virtuosas, numa abundância de boa vontade impessoal, “acaba
tornando os homens melhores, na medida em que os tornou menos desconfiados”.[3]
Para Nietzsche, nesse caso, o erro psicológico e a insensibilidade ajudam a
humanidade a avançar.
Em sua obra “Humano,
demasiado humano”, citando La Rochefoucauld, Nietzsche diz que este tem razão
ao afirmar que aquilo que o mundo chama de virtude não é, via de regra, senão
um fantasma formado por nossas paixões, ao qual damos um nome honesto para
impunemente fazer o que quisermos. De que serviria, então, buscarmos a verdade?
Apesar destas vantagens, Nietzsche acreditava
que, seja qual for o resultado, o ressurgimento da observação moral se tornou
necessário. A humanidade não pode ser poupada da visão cruel “da mesa de
dissecação psicológica e de suas pinças e bisturis”.[4]
Evitar tal estudo, segundo
Nietzsche, seria incorrer no mesmo erro cometido pela maioria dos filósofos,
que partem, em suas análises, de falsas explicações de determinados atos e
sentimentos humanos[5]. Assim,
elucidar em que consiste o Bem e o Mal, quais valores são bons e maus, é
condição necessária à fundamentação e justificação das ações morais no mundo.
Nos próximos itens serão
abordados alguns dos aspectos da filosofia moral nietzscheana. Inicialmente serão
tratados aspectos acerca da sua genealogia da moral, onde o autor trata da
moral dos nobres e da moral dos escravos. Em seguida, será apresentada a
perigosa relação da moral com a racionalidade e, por fim, o projeto de transvaloração
de valores que é, ao fim e ao cabo, trata-se da sua grande proposta em relação
ao tema da moralidade.
2.
Moral dos Nobres e Moral dos Escravos
Grande parte da obra
filosófica nietzschiana é relativa às questões morais. A posição de Nietzsche é
fundamentalmente de crítica aos valores dominantes modernos, quer dizer, para
Nietzsche, aquilo que é ou foi considerado "bom", do ponto de vista
moderno e cristão, é ou foi, na verdade, total ou parcialmente
"mau".
Sua perspectiva consiste,
de um lado, em colocar questionamentos à moral, ou seja, ao valor absoluto da
moral e, de outro, fazer uma crítica às valorações morais
tradicionais. Podemos extrair, portanto, um duplo sentido dessa crítica
moral.
No primeiro sentido, temos
uma crítica total à moral, quer dizer, a moral é vista como ruim em si mesma. Ela
representa uma simples coerção ao indivíduo autônomo. A moral, aqui, é um
instrumento do “instinto de rebanho".[6]
Já no segundo, Nietzsche
defende que existe na moral uma distinção genealógica. De um lado, a moral
aristocrática, que surge em tribos dominantes; de outro, a que representa sua
antípoda, a moral dos impotentes.[7] Em
termos gerais, a genealogia da moral nietzschiana indica a existência
fundamental de duas morais: a moral dos senhores e a moral dos escravos.
A motivação que Nietzsche
encontrou para escrever sobre suas hipóteses acerca da moral, segundo ele, foi
uma publicação de 1877, de Paul Rée, A origem das impressões morais.[8] Tal
obra, para Nietzsche, apresenta uma
procedência dos valores morais, tipicamente fruto do pensamento inglês e
contrária ao pensamento genealógico da moral.
É com a análise das teses
defendidas por Rée que Nietzsche diz elaborar seus estudos. “Como um espírito
positivo, para substituir o improvável pelo mais provável, e ocasionalmente um
erro por outro”.[9]
Para Nietzsche, o erro da
genealogia da moral “dos ingleses” é evidente, desde seu início. Ele nasce na
origem do conceito e do juízo de “bom”.
Para “os ingleses”, as ações não egoístas foram louvadas e consideradas
boas por aqueles a quem foi feito o bem, aos quais se mostraram úteis.
Mais tarde, foi esquecida
essa origem do louvor, e as ações não egoístas, pelo simples fato de terem sido
costumeiramente tidas como boas, foram também sentidas como boas, como
se fossem, verdadeiramente, algo bom. Para Nietzsche, nessa forma genealógica
encontramos toda a idiossincrasia dos ingleses. Temos “a utilidade”, “o esquecimento”,
“o costume” e, por fim, “o erro”. [10]
Para Nietzsche, o
conceito de “bom” não surge daqueles a quem foi feito o “bem”. Foram os “bons” mesmos, isto é, os nobres, os
poderosos, os superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram
a si e a seus atos o conceito de bons. O “mau” representava a oposição a tudo que
os nobres acreditavam representar, ou seja, o oposto do que era baixo, vulgar,
plebeu.
Pela genealogia nietzschiana,
foi a partir do pathos da distância que foram criados os valores. É
através dele que o nobre toma para si o direito de criar valores. Para
Nietzsche, não há sentido, nesse ponto, em se falar de utilidade, pois para os
nobres, “que lhes importa a utilidade?!”.[11]
Nietzsche, com sua
análise genealógica, joga por terra os princípios morais mais importantes do
pensamento moderno. De tal forma, que a primeira tarefa preparatória à
interpretação da crítica genealógica nietzschiana consiste em um trabalho de esclarecimento
e auto-reconhecimento dos princípios morais modernos, como finitos e
falíveis.
Como veremos
posteriormente, essa genealogia colocará questões admiráveis quanto às
representações do Bem e do Mal e aos modos de fundamentação e legitimação das ações
morais. Não há dúvida: é preconceito acreditarmos que, hoje, sabemos mais
do que em qualquer outro momento da História a respeito
do que seria bom, mau, louvável ou condenável.[12]
Em seus estudos, Nietzsche constatou a
existência de dois tipos fundamentais de moral. Segundo ele, há a moral dos
senhores e a moral dos escravos. A primeira tem seus valores firmados pelos
dominantes, pelos orgulhosos, e a segunda pelos dominados, pelos “cansados de
si”.[13]
Nietzsche percebia que, nas culturas
mais elevadas, podíamos encontrar tentativas de conciliação entre as duas
morais. Mais frequentemente, entretanto, existia uma confusão ou incompreensão
entre estas e, por vezes, uma dura coexistência. Seria possível, inclusive, a
coexistência de uma ao lado da outra, abrigadas em um só indivíduo.
Na moral dos senhores, os valores teriam
sido originados por uma classe dominante, que tinha consciência de sua própria
superioridade sobre a classe dominada. Já na outra, a moral dos escravos,
teríamos o surgimento dos valores morais entre os dominados, os escravos e os
dependentes, em qualquer grau.
No primeiro caso, isto é, quando os
dominadores tiveram que determinar o conceito "bom", os “estados mais
elevados da alma” seriam decisivos na determinação dos valores. Para Nietzsche,
o verdadeiro homem aristocrático mantém, longe de si, os seres nos quais se
manifestam certos estados negativos; ele os despreza[14].
Observe-se que, nesse primeiro tipo de
moral, "bom" e "mal" significam unicamente
"aristocrático" e "desprezível". Despreza-se o velhaco, o
medroso, o pedante, aquele que não pensa senão na sua vantagem imediata, e
ainda o desconfiado, cuja visão não é a de um homem livre. Ainda o que se
humilha, o adulador, quem mendiga uma esmola e todos os mentirosos.[15]
Na Grécia Antiga, segundo Nietzsche, os
nobres, ao se autodenominarem "nós verdadeiros", estavam indicando,
inicialmente, que os valores morais se vinculavam não às ações, mas às pessoas.
Eram exatamente esses nobres, representantes da espécie aristocrática do homem,
que determinavam os valores.
A classe aristocrática não sentia necessidade
de ser aprovada ou louvada. Era ela quem julgava, seguindo o preceito de
"aquilo que me é prejudicial é prejudicial em si".[16]
Era ela quem atribuía valor às coisas; era a criadora de valores. A moral aristocrática é a moral da exaltação
de si mesma, moral em que predominam os sentimentos de prosperidade, de
potência, de felicidade, a felicidade da alta tensão, a consciência de uma
riqueza que quer atingir as culminâncias e se doar. É a moral de Zaratustra.[17]
O homem aristocrático socorre quem é
desafortunado, mas não ou pelo menos não sempre, por compaixão, antes por um
estímulo que lhe vem de seu excesso de potência. O homem nobre não faz a
“caridade cristã”; ele não confunde compaixão com pena. Ele não se deixa influenciar pela infelicidade
do outro, ele apenas não continua “desprezando” o ser digno de pena.[18]
Os aristocratas estão longe de
desconhecer a compaixão. Porém, homens aristocráticos e valorosos não vêm na
compaixão uma ação de forma desinteressada ou altruísta. A fé em si mesmo, o
orgulho de si mesmo, uma “aversão ingênita e irônica” pelo altruísmo
caracteriza a moral aristocrática, ao mesmo tempo em que nutre um leve desprezo
por todo sentimentalismo.[19]
Para Nietzsche, a compaixão, a caridade cristã,
foi, ao longo do tempo, confundida com o sentimento de pena, como um contágio
do sofrimento, insuflando a abdicação de alguém que se deixa influenciar,
invadir pela infelicidade do outro, mas, ao mesmo tempo, continua desprezando o
ser digno de pena, mediante uma atitude niilista, conservadora, alheia a tudo
aquilo que só merece desaparecer.
Segundo Nietzsche, a piedade está em
franca contradição com as emoções fortificantes, as que elevam a energia do
sentimento vital. A piedade exerce uma ação depressiva. Quando alguém se compadece,
enfraquece. É ainda pela piedade que se aumenta e se multiplica o desperdício
de energia que o sofrimento, por si próprio, já implica para a vida. O próprio
sofrimento torna-se, pela compaixão, contagioso.[20]
Admitindo que se avalie
a piedade pelo valor das reações que habitualmente suscita, aquela aparecerá,
ainda mais claramente, como uma ameaça contra a vida. A piedade contradiz a lei
da evolução, que é a de seleção. Conserva o que está pronto para o declínio,
manifesta-se em favor dos deserdados e dos condenados pela vida.
A compaixão, “instinto depressivo e
contagioso”, contradiz os instintos que visam à conservação e à valorização da
vida. Tal instinto, não só atua como protetor da miséria, mas também como
multiplicador de todos os míseros; torna-se mola essencial da acentuação da décadence.[21]
Para Nietzsche, a “piedade conduz ao
nada!... É claro que não se diz ‘nada’: utiliza-se, em seu lugar, ‘o além’, ou
‘Deus’, ou ‘a verdadeira vida’, ou ainda nirvana, redenção, beatitude,
bem-aventurança...”. A inocente retórica, religiosa e moral, toma um aspecto
muito menos inocente quando se descobre de que natureza é a tendência que ali
se abriga, sob o manto do vocabulário sublime, “a tendência hostil à vida”.[22]
Sob o ponto de vista de Nietzsche, o que
faz a moral dos dominantes parecer mais estranha e penosa ao gosto dos
“modernos” é o rigor do seu princípio básico, de que apenas frente aos iguais
existem deveres. Acredita-se que, frente aos seres de categoria inferior, pode-se
agir ao bel-prazer. Os poderosos estão
além do Bem e do Mal.[23]
Não existe uma igualdade construída pela moral, entre diferentes.
Nesse sentido, a moral
aristocrática entra em choque frontal com o princípio de igualdade, fundamental
na época moderna. Tal princípio, presente desde a tradição judaico-cristã, tão
criticada por Nietzsche, refletia a igualdade natural entre os homens, no
"todos são iguais diante de Deus". Atualmente, tal princípio
encontra-se em grande parte dos tratados políticos e éticos modernos, sob
diversas formas que denotam que "todos são iguais diante da lei e do
Estado".
Esse princípio, no seu prolongamento, propõe uma compreensão do
valor e do bem humanos, na qual as hierarquias e as relações entre senhor e
escravo não têm mais sentido. Relações hierárquicas seriam um desvio da bondade
natural dos homens ou a Pré-História da humanidade. Não faz nenhum sentido,
para a moral moderna igualitarista, um pensamento que propõe o estabelecimento
de hierarquias e a divisão hierárquica da sociedade entre dominados e
dominadores.
Atualmente, as formas de
pensamento mais sofisticadas pretendem que as leis do Estado, as normas de
conduta, tenham como base esse princípio de igualdade. O princípio da igualdade
é, talvez, um dos mais difundidos princípios atuais. Está presente na maioria
dos Estados de Direito. Figura, inclusive, no modo de pensar e valorar. Faz
parte, acreditamos, até do não consciente. É um pré-conceito moral de primeira
ordem.
O segundo tipo de moral,
a moral aos escravos, é aquela criada pelos sentimentos daqueles que
foram violentados, oprimidos, prisioneiros, sofredores, inseguros e cansados de
si. Para Nietzsche, a moral dos escravos identifica-se com a que propõe o
cristianismo. Para ele, o cristianismo põe em primeiro plano as qualidades que
servem para adoçar a existência, como a paciência, a compaixão e a humildade. [24]
Segundo Nietzsche, o olhar do escravo não é
favorável às virtudes do poderoso. O escravo é cético e desconfia de tudo o que
é considerado “bom” pelo poderoso. Acredita que a própria felicidade do
poderoso não é verdadeira. Inversamente,
“as características que servem para aliviar a existência dos que sofrem são
postas em relevo e inundadas de luz”[25].
A
compaixão, a mão solícita e afável, a paciência, a diligência, a humildade, a
amabilidade, recebem todas as honras. Tal conduta é facilmente explicável, pois
são essas as propriedades mais úteis. Os únicos meios de suportar a pressão da
existência. “A moral dos escravos é
essencialmente uma moral de utilidade”.[26]
Segundo
Nietzsche, aqui está o foco de origem da famosa oposição "bom" e
"mau". No que é mau, sente-se poder e periculosidade, uma certa
terribilidade, sutileza e força, que não permitem o desprezo. Logo, segundo a
moral dos escravos, o "mau" inspira medo. Segundo a moral dos
senhores, é precisamente o 'bom" que desperta e quer despertar medo, enquanto
o homem "ruim" é sentido como desprezível.
A
consequência do menosprezo chega ao seu auge quando, de modo consequente à
moral dos escravos, atinge o próprio conceito de "bom" dessa moral. O
homem bom tem de ser, no modo de pensar escravo, um homem inofensivo. É de boa
índole, fácil de enganar, talvez um pouco estúpido, ou seja, um bom homem. Para
Nietzsche, onde quer que a moral dos escravos se torne preponderante, a
linguagem tende a aproximar as palavras "bom" e "estúpido".
[27]
A última
diferença, verificada por Nietzsche entre as duas morais básicas, é que o anseio de liberdade, o
instinto para a felicidade e as sutilezas do sentimento de liberdade, pertence
tão necessariamente à moral e moralidade escrava quanto a arte e entusiasmo da
veneração, da dedicação, sintoma regular do modo aristocrático de pensamento e
valoração. [28]
Nietzsche despreza o pessimismo da
sensibilidade como sintoma de profundo empobrecimento vital. Para ele, o que o
homem quer, o que quer a menor parte de todo organismo vivo é um aumento de
poderio. “Não devido a uma moralidade ou imoralidade qualquer, mas porque vive,
e vida é precisamente vontade de poder”.[29]
O
homem nietzschiano tem necessidade de obstáculos, tem necessidade de desprazer.
Toda vitória, todo sentimento de gozo, todo acontecimento pressupõe uma
resistência vencida. O homem nietzschiano não luta pela felicidade, mas pelo
poderio.
Ao contrário do que pode parecer, Nietzsche
não se posicionou a favor do evolucionismo darwinista. Segundo ele, a utilidade
de um órgão não explica sua formação. Na biologia darwiniana, útil significa o
que demonstra ser vantajoso na luta contra outros seres; o sentido de crescimento,
de se tornar mais forte, abstraindo-se completamente da utilidade na luta. Esse
é o verdadeiro progresso.
Na luta pela existência, o acaso serve
tanto aos débeis como aos fortes, e a astúcia supre a força com vantagem. Sob
este ponto de vista, o Homem como espécie não progrediu; alcançam-se tipos
superiores, mas não se conservam: o nível da
espécie não se eleva. O Homem, como espécie, não representa um progresso
face a qualquer outro animal. Todo o mundo animal e vegetal não se desenvolve a
partir do mais baixo para o mais alto. Tudo se desenvolve contemporaneamente,
uma coisa sobre outra, através de outra, contra outra.
O homem selvagem, o homem mau da
linguagem moral, é uma volta à natureza. Para Nietzsche, os valores superiores
que hoje se colocam sobre a humanidade não representam uma seleção, mas uma
decadência. A grande fecundidade, a duração, acentua-se nos seres médios e
ínfimos. Para os fortes, o perigo aumenta e, com ele, a rápida destruição e a
diminuição de seu número.
A análise do darwinismo, feita por
Nietzsche, na verdade não tem intuitos científicos. Nietzsche não visava a
criticar a obra de Darwin como biólogo. Sua preocupação era com a sociedade do
seu tempo. As condições da luta pela vida acarretariam, para ele, a vitória dos
seres médios e ínfimos e uma consequente diminuição dos seres superiores.
A luta pela vida não tem por necessidade
a prevalência dos mais fortes, pois, segundo ele, os mais débeis, por seu maior
número e por sua astúcia, prevalecem sobre os mais fortes. Para Nietzsche, é necessário
assegurar e proteger os tipos excepcionais, que são em menor número e correm os
riscos e perigos do desaparecimento.
3.
Moral e razão
Segundo Nietzsche, “nós homens do
conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos” [30].
Para ele, a possibilidade de nos conhecermos, integralmente, deve ser
totalmente descartada. É uma ilusão pensarmos que nossas ações são determinadas
por motivos e de que somos conscientes. Os verdadeiros motivos que despertam e
dirigem nossas ações escapam aos nossos cálculos racionais. Nós não conhecemos
o que há de mais possante e mais ativo em todos nós: nossos instintos.
Nietzsche recusa-se a aceitar o otimismo
de Sócrates. Sócrates com seu “cognitivismo ético” afirmava que só pecamos por
ignorância. Aquele que, efetivamente, conhece o Bem, não pode deixar de
praticá-lo em suas ações, “ninguém erra deliberadamente”[31].
Tal atitude otimista, segundo Nietzsche, é comum aos teólogos que sustentaram
que todas as coisas são controladas pela inteligência e que Deus deve ter
criado o melhor dos mundos possíveis.
Nietzsche, também, revela-se um crítico
extremado ao analisar o trabalho kantiano no domínio da moral. Podemos
apresentar como sua principal objeção àquela que se refere à tese da existência
de uma moral racional. Nietzsche rejeita a possibilidade de uma moral desvinculada
das paixões. “A ilusão de uma moral racional reside no fato de que ela esconde
sua origem irracional e, segundo seus próprios critérios, isso é, no fundo,
imoral”[32].
Reboul acredita que a razão prática de
Kant desempenharia o papel de uma racionalização, no sentido freudiano. Seria
apenas uma justificativa coerente para condutas cujas causas verdadeiras e
inconfessáveis seriam encobertas pela ideia da razão.[33]
Um código moral jamais poderá ser autônomo.
Ele é apenas umas das formas em que se apresentam forças imorais e instintivas.
São as forças biológicas e sociais, portanto imorais, que nos pressionam e nos
fazem agir. “O imperativo categórico só o é porque ignora sua origem”[34].
Na realidade, um imperativo é sempre
condicionado pelo meio ou pela tendência dominante do indivíduo que o promulga.
Dessa forma, Kant nada mais fez do que universalizar e tornar respeitável seu
próprio instinto de obediência: em resumo, as morais não são senão a expressão
de uma linguagem cifrada das paixões, e estas, por igual, linguagem cifrada das
formações orgânicas.[35]
Reboul discute também o
problema da responsabilidade e do livre-arbítrio, assinalando que, para Kant, a
responsabilidade constitui exigência primordial da moral. Para Nietzsche,
entretanto, essa exigência é irracional. Segundo seu modo de entender, o
vínculo entre a falta e o castigo é arbitrário, e o sentimento de culpa, subjetivo.
Exemplo disto é o fato
de que, antigamente, as bruxas eram queimadas vivas e elas próprias se sentiam
culpadas do crime de que eram acusadas. A culpabilidade do homem moderno é do
mesmo gênero. A culpabilidade não é um fato, é uma interpretação, no sentindo
nietzschiano, de um mal fisiológico ou uma necessidade de dar sentido ao
sofrimento, dele fazendo um castigo.[36]
O que Nietzsche
claramente mostra é que a interpretação não guarda nenhum compromisso em
relação à verdade. Nenhum vínculo existe entre os poderes maléficos atribuídos
às bruxas e o sentimento de culpa por elas acolhido. Não obstante, fica muito
claro que o sentido que se aceita entre a acusação e a pena parece ter sobre a
vítima uma função relevante. Porém, não há qualquer compromisso entre a análise
feita e a verdade.[37]
Nietzsche acreditava que os estudiosos da moral que o
antecederam sempre oscilavam no tratamento dos valores, entre aquilo que valia
em si e aquilo que valeria para todos.
A crença na validade em si de uma postulação, de um valor
atribuído, requer, de imediato, que compreendamos o valor como algo dado, e
portanto, inquestionável quanto ao seu próprio valor. Já no segundo caso, em
que o valor é válido para todos, acaba ocorrendo exatamente o mesmo, pois o
valor é proveniente de uma avaliação da coletividade. Nas duas possibilidades, existe
algo em comum: a impossibilidade de questionamento acerca do valor das próprias
avaliações.[38]
Nietzsche entende o elemento crítico como criador. Para que
isto seja possível, é necessário que aquele que critica tenha a possibilidade,
o poder, de avaliar aquele que atribui valores. Nisso consiste a filosofia “a
marteladas” proposta por Nietzsche; a possibilidade de destruir, a golpes de
martelo, não só ideias, mas também ideais.
Quando nos perguntamos sobre valores, para Nietzsche,
também devemos nos preocupar quanto à validade daquele que os atribui. Desta
forma, tanto os valores em si, quanto aquilo que vale para todos, podem ser
afastados. A crítica, agora, atua sobre quem valora, não sobre os valores
atribuídos. Permite-se que se “possa demonstrar a impertinência de tais
análises e, com isso, recusar a continuidade dessas avaliações”.[39]
Para Nietzsche, nunca houve um questionamento sobre o valor
dos valores morais. Tais valores sempre foram considerados como reais e
inquestionáveis.[40] Fácil é
ver que, ao afastarmos a possibilidade de crítica aos elementos avaliadores, na
verdade, estamos apenas corroborando com a avaliação feita.
Nietzsche acredita que a consciência, a boa reputação, o
inferno e, por vezes, a polícia, impossibilitam qualquer imparcialidade frente
à moral. Servem como verdadeiras ferramentas repressivas a serviço da moral.
Em certos casos, a moral não se revela senão como expressão
da obediência aos costumes dominantes nos grupos sociais. Assim, sempre que
agimos de acordo com os padrões admitidos e incentivados pela tradição, estamos
ao abrigo de quaisquer sanções.
Pelo
contrário, se deixarmos de acatar as imposições sinalizadas pela comunidade,
logo seremos caracterizados como imorais, sendo, obviamente, submetidos a exclusões.
O bom é aquele que acolhe todos os valores tradicionais e age de acordo com os
interesses do grupo. Mau, em decorrência, é todo aquele que age por contra própria,
não levando em conta os interesses da coletividade.
Nesses termos, a moralidade pode ocasionar
o enrijecimento da sociedade. Os costumes representam a experiência adquirida
pela humanidade anterior, acerca do que considerava útil ou prejudicial. Porém,
o sentimento dos costumes, a moralidade, não se refere à experiência enquanto
tal, mas à antiguidade, à santidade e indiscutibilidade dos costumes. “Assim,
este sentimento opõe-se a que se façam novas experiências e se corrijam os
costumes, quer dizer, a moralidade se opõe ao nascimento de costumes novos e
melhores; ela embrutece.”[41]
Por
vezes, a moral, quando não faz uso de suas ferramentas repressivas, ainda
possui outras formas de defesa. A moral persuade, entusiasma e busca suprimir a
dúvida em relação a si mesma; é a “mestra da sedução”.[42] A
moral, pela força ou pela sedução, acaba por surpreender a razão e faz com que
esta se torne submissa à sua vontade.
Nietzsche
acreditava que o próprio Kant havia produzido seu sistema sob a sedução da
moral. A Teoria do Conhecimento de Kant teria como pano de fundo a própria
moralidade, que se configurava, em vista disso, como base das construções
teóricas.[43]
Kant
tinha em mente suprir a carência de crítica quanto ao valor da razão. Com isto
acreditava chegar a um conhecimento seguro e perene. Kant verificava a
fragilidade que existia nas argumentações que envolviam a Metafísica, quando
comparadas às certezas proporcionadas pelas chamadas ciências da natureza. Para
ele, era necessário fazer uma crítica da razão pura.
Porém,
na ótica de Nietzsche, a crítica kantiana tomava como pressuposto uma ilusão
advinda da não observação do fundamento de sua construção argumentativa. Sua
defesa à moral era uma expressão acrítica. “O problema fundamental que se
configura como móvel da filosofia kantiana é amoral, portanto, a razão, não no
seu uso especulativo, mas no seu uso prático”.[44]
É
o próprio Kant que estabelece ser “o propósito último para o qual conflui,
enfim a especulação da razão em seu uso transcendental concerne a três objetos:
a liberdade da vontade, a imortalidade da alma e a existência de Deus”.[45]
Para
Nietzsche, ao estabelecer estes três objetos como propósito último, Kant jamais
realizou uma verdadeira crítica, haja visto que não colocou em momento algum a
questão em termos de valores. Kant, segundo Nietzsche, desde o início, não teve
intenção de atacar a dogmática cristã, muito pelo contrário. Ao estabelecer a
presença necessária dos três elementos num mundo puramente inteligível, Kant
defendeu a dogmática teológica.
A
crítica kantiana jamais questionou o valor do próprio conhecimento ou da
moralidade. Na verdade, buscou erigi-los em algo absolutamente seguro, mediante
a crítica do falso conhecimento e da falsa moral. “O valor do conhecimento e o
valor da moral são, de per si, algo dado para Kant”.[46]
Nietzsche acreditava que Kant, para dar lugar ao seu
“império moral”, viu-se obrigado a considerar um mundo indemonstrável, um “para
além de lógico”. Para ele, a necessidade de Kant era, na verdade, tornar
invulnerável o “domínio moral”, de preferência inatingível pela razão. Kant
“sabia muito bem com que força uma ordem moral é ameaçada pela razão! ”[47]
Kant
tem em mente que sua razão se concentra na resposta a três perguntas básicas:
Que posso saber?
Que devo fazer?
Que me é permitido
esperar?[48]
A própria formulação dessas perguntas denota,
para Nietzsche, a superficialidade da crítica de Kant. Para ele, tais perguntas
deixam claro que, para Kant, existe um conhecimento verdadeiro, um procedimento
a ser seguido, uma moral verdadeira e, por último, a existência de uma consequência
da ação, aceitação da moral verdadeira. “A crítica kantiana principia por estabelecer
que tais respostas, realmente, existem, constituindo-se, desse modo, em uma
demonstração de sua verdade”.[49]
Nietzsche,
ao afirmar que não existem fatos morais, mas sim interpretações morais sobre
fatos, recusa o fato em favor da interpretação. Elimina, de imediato, as
ilusões da verdade referentes ao conhecimento, à moral e à religião. A crítica
nietzschiana, segundo Deleuze, pela ênfase dada à interpretação, inicia-se pela
pergunta: “Quem?”, antecedendo a razão, o entendimento e as categorias.[50]
A
investigação genealógica nietzschiana procede a uma desconstrução da proposta
moral tradicional. São objetos de crítica o estabelecimento do significado dos
conceitos “bom” e “mau”, tanto com relação a sua efetividade, em termos de
significação, quanto à sua procedência.
Para Nietzsche, tais expressões não são conceitos e sim modo de ser
daqueles que avaliam. São valores cujo valor deveria ser buscado em suas
condições de criação.
A
genealogia da moral nietzschiana busca responder perguntas como as seguintes:
como foi efetivada a valoração do bom e do ruim? Que esta valoração
expressa? A quem deve ser referida? Que
quer aquele que estabelece o bom e o ruim como valor? Nietzsche introduz na
Filosofia os conceitos de sentido e de valor, excluindo fenômenos morais e
afirmando existirem interpretações morais para estes fenômenos.[51]
A
crítica feita aos valores não se contenta em verificar quais valores estão por
trás da avaliação, mas qual a avaliação que determina o valor desse valor.
Nietzsche, dessa forma, buscava criticar Kant e Hegel, bem como todos os moralistas
ingleses, que tinham como critério de avaliação a “utilidade”; o mesmo critério
utilizado pela moral escrava.[52]
4. Transvaloração de Valores
Nietzsche claramente
nos mostra que não é suficiente a morte de Deus para que se opere a
transmutação dos valores. “O discurso da morte de Deus revela a ilusão
religiosa e pressupõe que a ideia de Deus é apenas um refluxo dos desejos
humanos”. [53]
Talvez, por isso, por
ter sido fortemente desejado, mesmo quando já não existe qualquer ilusão quanto
à existência de uma instância exterior e superior, que impossibilite o homem de
praticar determinados atos este “proíbe a si próprio o que lhe proibiam”[54].
O homem se encarrega,
espontaneamente, de uma vigilância e de fardos que já não lhe vêm do exterior.
É assim que, para Deleuze, a Filosofia, dos socráticos aos hegelianos, continua
a ser a história das extensas submissões do homem e das razões que ele se dá
para as legitimar.
Como já visto, toda
interpretação é determinação do sentido de um fenômeno. O sentido consiste
precisamente numa relação de forças, segundo a qual algumas agem e outras reagem,
num conjunto complexo e hierarquizado. Qualquer que seja a complexidade de
um fenômeno, distinguimos bem forças ativas, primárias, de conquista e
subjugação, e forças reativas, secundárias, de adaptação e de regulação. [55]
Para Nietzsche, a História nos mostra um
estranho fenômeno, pois as forças reativas triunfam, a negação vence. Isso acontece na história da vida e na história
da Terra. Em toda parte existe o triunfo do “não” sobre o ”sim”, da reação
sobre a ação. Por todos os lados existe o niilismo, o triunfo dos escravos, a
vitória comum das forças reativas e da vontade de negar. Na luta “Roma contra
Judéia”, não há dúvida de quem saiu vitoriosa.[56]
Para uma filosofia da força ou da vontade,
como é a de Nietzsche, parece difícil explicar como é que as forças reativas,
como é que os “escravos”, os “fracos”, são os vitoriosos. Para Nietzsche, os
fracos, os escravos, não triunfam por adição de suas forças, mas por subtração
da força do outro. Eles triunfam, não pela composição do seu poder, mas pelo
poder do seu contágio.
Nietzsche mostra que os critérios da luta
pela vida, da seleção natural, favorecem necessariamente os fracos e os doentes
enquanto tais, os “secundários”. Chama-se doente aquele que tem uma vida
reduzida aos seus processos reativos. Por maior razão, no caso do Homem, os
critérios da História favorecem os escravos enquanto tais. É um devir-doentio
de toda a vida, um devir-escravo de todos os homens, o que constitui a vitória
do niilismo.
Da mesma forma que o escravo não deixa
de ser escravo ao tomar o poder, assim acontece com o fraco. As forças
reativas, ao levarem a melhor, não deixam de ser reativas. Em todas as coisas
há uma tipologia qualitativa; trata-se de baixeza e de nobreza.
Para Nietzsche, os Estados modernos são
formigueiros, em que os chefes políticos levam a melhor devido à sua baixeza e
ao contágio dessa baixeza. Os nossos senhores são escravos que triunfam, num
devir-escravo universal.[57]
Quando o niilismo
triunfa, então, e só então, a vontade de poder deixa de querer dizer “criar”
para significar querer o poder, desejar dominar. A vontade deste poder é
precisamente a do escravo, e a maneira como o escravo ou o impotente concebe o
poder, a ideia que dele faz, e a que ele aplica quando triunfa. Para Nietzsche, “poder não é sinônimo de
dominação, mas significa criação”[58].
A luta pela vida não tem por necessidade
a prevalência dos mais fortes, pois os mais débeis, por seu maior número e por
sua astúcia, prevalecem sobre os mais fortes. Para Nietzsche, é necessário
assegurar e proteger os tipos excepcionais, que são em menor número e correm os
riscos e os perigos do desaparecimento. “Temos sempre de defender os fortes
contra os fracos.”
Não
há dúvida de que os homens criam seus valores sob certas condições. Os valores
não se encontram prontos para serem utilizados. Mais importante que sua criação
são os efeitos que os valores podem indicar. Os valores podem indicar tanto a
valorização da vida, sua plenitude, força, quanto sua degeneração. Nasce,
então, a importância da gênese dos valores; é preciso que se interprete e se
avalie o elemento formador dos referidos valores.
Para
Nietzsche, uma moral que tenha como base a compaixão acaba por levar o homem ao
enfraquecimento. Os instintos de abnegação, sacrifício e a negação do próprio
homem, mascaram sua vontade de viver. Para Nietzsche, o que determina uma
avaliação é a vontade que impulsiona a valoração. A criação de um valor tem sua
origem na vontade de potência. Vontade que determina a relação de uma força com
outra.
Como
visto anteriormente, a interpretação é sempre a imposição de uma perspectiva,
de uma vontade hegemônica. É a vontade de potência que, ao interpretar e
avaliar, introduz os valores. O apoderar-se da vontade é criador, institui um
valor e permite que novas avaliações sejam feitas sobre esse valor, sucessivamente,
criando sempre, infinitamente, novos valores.[59]
Como
a vontade de potência é a base de toda interpretação e avaliação, e a moralidade
se apresenta justamente como uma interpretação, a vontade de potência surge
como condição para compreender a própria moralidade. A moral não é algo dado,
mas algo construído; a expressão de um impulso vital enquanto base das
valorações. É “um móvel das configurações morais”[60].
Devido
à possibilidade da criação de novos valores por aquele que avalia, Nietzsche
acredita no “filósofo do futuro”. Alguém
com vontade de potência positiva, capaz de efetuar a transvaloração dos valores
da moral moderna.
O
ser humano é apenas um ser de passagem. Um ser que superou, no desenvolvimento
das espécies, os demais seres vivos, e que certamente deverá ser superado. Cabe
ao ser humano elevar-se sobre si mesmo e produzir o super-homem. Este destruirá
todos os valores consagrados até aqui, criando novos valores. Tais valores não existirão senão através da
atividade criadora do homem, enquanto dominados pela vontade de potência.
O
super-homem não pertence a um mundo metafísico; ele não é um ser supraterrestre.
Na verdade, ele pertencerá a este mundo. Certamente não marcará o fim da
História. Será ele também um corpo. Como corpo alcançará novos níveis de saber
e criará novos valores. “O super-homem de Nietzsche, nascido da morte de Deus,
deixa para trás todas as determinações”, assumindo, ele próprio, o lugar de
Deus ‘matado’, afirmando a realidade exclusiva deste mundo em seu eterno ciclo.[61]
No que se refere à moral, Nietzsche tem
como objetivo principal expurgá-la das concepções que a deturpam. Nietzsche não
rejeita a moral, "a vida é ela própria moral”. O que não lhe parece
aceitável é que se pretenda apreciar os valores da vida buscando-se uma perspectiva
do exterior dela própria. Desmistificá-la de modo algum significa destruí-la.
Importa, sim, em se utilizar valores caducos para a criação de outros que se
revelem mais significativos.
5.
Considerações Finais
O século
XIX começou cheio de esperanças. Acreditava-se firmemente no futuro da ciência
e no crescente progresso da civilização. Existia a crença numa verdade absoluta
e numa razão com capacidade infinita. Apenas alguns, mais cautelosos, previam
outros tempos. Porém, em seu último quartel, em movimento semelhante ao de um
grande pêndulo, passa-se a não acreditar em mais nada. Onde se via simplicidade
e clareza, passa-se a ver dúvida, sofrimento e desilusão.
É nesse
período histórico que o homem ocidental passa de uma confiança quase ilimitada
em sua própria capacidade, para uma situação brutalmente oposta. Seu potencial
espiritual, sua capacidade de obter o conhecimento seguro, seu domínio sobre a
natureza e seu destino progressivo são, agora, uma debilitante sensação de
insignificância metafísica e inutilidade pessoal. Reinam a incerteza no conhecimento,
uma relação mutuamente destrutiva com a natureza e uma insegurança intensa a
respeito do futuro da humanidade.
Vivia-se,
à época, o tempo do homem do sentido histórico nietzschiano. Seus horizontes
estavam cada vez mais abertos, existia uma grande exposição, sem precedentes,
aos vários acontecimentos. Porém, ao mesmo tempo, sentia-se uma alienação
particular de graves proporções. Apesar da disponibilidade de uma grande massa de
informação, sobre todos os aspectos da vida, havia menos ordem, menos coerência
e menos certezas.
O homem
estava condenado a ser livre, detinha a possibilidade e a necessidade de
efetuar escolhas e acabava por conhecer o permanente peso do erro. Apesar de
serem suas as escolhas, o homem vivia na constante ignorância de seu futuro,
não sendo possível acreditar que algo absoluto, transcendental, assegurava a
realização da vida ou da história humana.
As coisas
existiam simplesmente por existir, e não por alguma razão “mais sublime” ou
“mais profunda". Não se era mais capaz de acreditar que o homem possuísse
uma essência determinante, tinha somente sua existência, uma existência marcada
e vivida frente à mortalidade, ao risco, ao medo, ao tédio, à contradição e à
incerteza.
No campo
político, a busca pela independência, pela autodeterminação e o individualismo,
forças que embalaram o homem ocidental desde o Renascimento, levaram-no para um
mundo onde a espontaneidade e a liberdade individual estavam cada vez mais sufocadas.
Enquanto na teoria existia um cientificismo reducionista, na prática pregava-se
a coletividade dos grandes rebanhos e o conformismo das sociedades de massa.
Os grandes
projetos políticos evolucionários da Idade Contemporânea, que anunciavam uma
liberdade pessoal e social, levaram a condições em que o destino individual era
cada vez mais dominado pelas superestruturas comerciais e políticas. Da mesma
forma que o homem se tornara um átomo sem sentido no universo moderno, o
cidadão também havia se tornado um número insignificante nos Estados modernos.
Como já havia dito Zaratustra, eram apenas milhões a manipular e a coagir.
Deus estava
morto. As categorias humanas, até então utilizadas para caracterizar o mundo,
faziam com que este parecesse desprovido de significado e objetivo. O homem
sentia-se abandonado, deixado por sua própria conta. Era preciso admitir e
optar livremente para enfrentar a dura realidade da ausência de sentido da vida.
Somente a eterna luta poderia lhe dar algum significado.
A filosofia
de Nietzsche reflete bem seu próprio tempo. Boa parte de sua obra é reservada para
apresentar a doença que atinge sua cosmologia. Nietzsche diagnostica, aponta as
causas, os efeitos e o que, para ele, seria o caminho para a cura. A doença
diagnosticada é o niilismo, efeito desagregador das forças cósmicas e que
enfraquece o que lhe é mais caro: a vida.
O termo
niilismo é geralmente utilizado com o intuito polêmico de designar doutrinas que
se recusam a reconhecer realidades ou valores cuja admissão seria considerada
importante. Entretanto, na obra de Nietzsche o termo ganha um novo sentido,
sendo utilizado para qualificar sua oposição radical aos valores tradicionais.
Para ele, existe uma forte ligação entre o niilismo e a moral vigente no mundo
ocidental.
Dessa forma, a solução para os problemas
passa pela disposição do homem atravessar a ponte que o leva para a criação de
novos valores, que tenham maior identificação com a vida. A “morte de Deus”, ao
mesmo tempo que o liberta das antigas amaras marras morais, implica na
obrigação de criar novos valores que permitam a superação do nillismo.
BIBLIOGRAFIA
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Vozes, 2000.
SÓCRATES.
Sócrates – Vida e Obra, São Paulo: Nova Cultural, 1996.
[1] Bacharelando em Filosofia da
Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Pós-Doutor pela Universidade de
Sevilha. Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC/SP). Doutorando em Ciência Política, pela Universidade Estadual do Ceará
(UECE). Mestre em Direito pela UFC/CE. Mestre em Informática pela PUC/RJ.
Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu do Centro Universitário
Christus (UNICHRISTUS). Professor Adjunto da Universidade Estadual do Ceará
(UECE). Auditor-Fiscal do Trabalho. Centro Universitário Christus
(UNICHRISTUS), Universidade Estadual do Ceará (UECE) – Brasil. ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-2799-4036 Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2523315941972263. E-mail:
alexandre.bruno@unichristus.edu.br.
[2] Em
grande parte da sua obra, Nietzsche elabora uma cuidadosa análise da moral
vigente em seu tempo. Como será visto nesse texto, Nietzsche não apenas
analisa, como diagnostica “patologias” advindas dessa moral e sugere a “cura”. A
temática passa a ser explorada, especialmente, a partir da obra “Humano,
demasiado humano” e ocupará parte relevante das que serão escritas nos
demais anos produtivos do autor. Acredita-se que, para melhor compreender a sua
análise, é essencial a leitura atenta do seu estudo genealógico da moral, empreendido
em sua obra “Genealogia da moral: uma polêmica”.
[3]
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, Humano, demasiado humano, § 36, p. 44.
[4]
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, Humano, demasiado humano, § 36, p. 45.
[5]
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, Humano, demasiado humano, § 37, p. 45.
[7] NIETZSCHE,
Friedrich Wilhelm, Humano, demasiado humano, § 45, p. 51
[8]
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, Genealogia da moral, Prólogo, § 4, p. 10.
[9]
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, Genealogia da moral, Prólogo, § 4, p. 10.
[10]
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, Genealogia da moral, Primeira dissertação,
§ 2, p. 18.
[11]
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, Genealogia da moral, Primeira dissertação,
§ 2, p. 19.
[12]
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, Aurora,
Livro primeiro, § 2, p. 11.
[13]
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, Além do bem e do mal, § 260, p. 172.
[14]
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, Além do bem e do mal, § 260, p. 172.
[15]
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, Além do bem e do mal, § 260, p. 172.
[16]
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, Além do bem e do mal, § 260, p. 173.
[17] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim
falou Zartustra, Primeira Parte, § 1,
p. 33.
[18] HÉBER-SUFFRIN, Pierre, O
“Zaratustra” de Nietzsche, p. 64.
[19] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Alem
do bem e do mal, § 260, p. 173.
[20] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, O
anticristo, VII, p. 20-22.
[21] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, O
anticristo, VII, p. 20-22.
[22] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, O
anticristo, VII, p. 20.
[23] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Alem
do bem e do mal, § 260, p. 173-174.
[24] PENNA,
Antonio Gomes. Introdução à Filosofia da Moral, p. 83.
[25] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Alem
do bem e do mal, § 260, p. 174.
[26] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Alem
do bem e do mal, § 260, p. 174.
[27] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Alem
do bem e do mal, § 260, p. 175.
[28] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Alem
do bem e do mal, § 260, p. 175.
[29] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Alem
do bem e do mal, § 259, p. 171.
[30] NIETZSCHE, Friedrich Wilheln, Genealogia
da moral, Prólogo, § 1, p. 7.
[31]
SÓCRATES, Sócrates – vida e obra, p. 20.
[32] PENNA,
Antonio Gomes. Introdução à Filosofia da Moral, p. 84-85.
[33] REBOUL,
O . Nietzsche Critique de Kant.
[34] REBOUL,
O . Nietzsche Critique de Kant.
[35] REBOUL,
O . Nietzsche Critique de Kant.
[36] PENNA,
Antonio Gomes. Introdução à Filosofia da Moral, p. 85.
[37] PENNA,
Antonio Gomes. Introdução à Filosofia da Moral, p. 85.
[38]
AZEREDO, Vânia Dutra de, Nietzsche e a Dissolução da Moral, p. 26.
[39]
AZEREDO, Vânia Dutra de, Nietzsche e a Dissolução da Moral, p. 26.
[40] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, Genealogia
da Moral, Prólogo, § 6, p. 12.
[41] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Aurora,
Livro primeiro, § 19, p. 21.
[42]
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, Aurora, Prefácio, § 3, p. 6.
[43]
AZEREDO, Vânia Dutra de, Nietzsche e a Dissolução da Moral, p. 27.
[44]
AZEREDO, Vânia Dutra de, Nietzsche e a Dissolução da Moral, p. 29.
[45] KANT,
Immanuel, Crítica da Razão Pura, p. 474-475.
[46]
AZEREDO, Vânia Dutra de, Nietzsche e a Dissolução da Moral, p. 31.
[47] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, Aurora,
Prefácio, § 3, p. 8.
[48] KANT,
Immanuel, Crítica da Razão Pura, p. 478.
[49]
AZEREDO, Vânia Dutra de, Nietzsche e a Dissolução da Moral, p. 32.
[50]
AZEREDO, Vânia Dutra de, Nietzsche e a Dissolução da Moral, p. 32.
[51]
AZEREDO, Vânia Dutra de, Nietzsche e a Dissolução da Moral, p. 32.
[52]
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, Além do bem e do mal, § 211, p. 117-118.
[53]
SCHNEIDER (Org.), Manual de Dogmática, Vol I, p. 92.
[54] DELEUZE, Gilles, Nietzsche,
p. 21.
[55] DELEUZE, Gilles, Nietzsche, p. 21-22.
[56] NIETZSCHE,
Friedrich Wilhelm, Genealogia da moral, Primeira dissertação, § 16, p. 43.
[57] DELEUZE, Gilles. Nietzsche, p. 24
[58] GUERRA
FILHO, Willis Santiago, Teoria Política do Direito: uma introdução política
do direito, p. 16.
[59]
AZEREDO, Vânia Dutra de, Nietzsche e a Dissolução da Moral, p. 32.
[60]
AZEREDO, Vânia Dutra de, Nietzsche e a Dissolução da Moral, p. 45.
[61]
SCHNEIDER (Org.), Manual de Dogmática, Vol I, p. 92.
Muito bom o texto Alexandre, gostei bastante da experiência da leitura. Abraço
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