Como ensino filosofia? # 9 - O currículo I / terceiro ano



Segue o link para minhas aulas de filosofia do terceiro ano do ensino médio:

https://docs.google.com/document/d/1E_l-egBzowTxwwP_oKM_rkHYM2NPxC5i56nfkmwaT9Q/edit?usp=sharing

  Pensando no meu plano de ensino de filosofia para o nível médio como um todo, o conteúdo do terceiro ano pretende fazer o fechamento deste percurso mostrando críticas filosóficas à nossa civilização tecnológico-industrial. Além de filósofos que elaboraram estas críticas em suas obras, encontrei no tema da contracultura uma maneira de tentar mostrar tais críticas encarnadas em atitudes e posturas diante da vida, não apenas em ideias. Funcionou? Mais ou menos.

  Confesso que foi um choque perceber gradualmente que o estudo das ideias dos movimentos de contracultura dos anos 60 e 70, tema que tanto me interessava em minha juventude (e ainda interessa) não assume muita significação para boa parte dos meus alunos, talvez a maioria. Me lembro de ter ficado de boca aberta quando uma aluna do terceiro ano noturno me disse, certa vez, que de tudo que havíamos estudado desde o primeiro ano essa era a matéria mais chata. Em meu modo de ver, esta era a cereja do bolo, o momento final do curso de filosofia, no qual saíamos das ideias e dos livros de séculos passados para uma realidade bem mais próxima à nossa, em um passado recente… Mas, lembrando de um dos princípios da permacultura, é preciso aceitar o feedback e olhar as coisas para além de nossa percepção pessoal.

  De qualquer modo, não considero que há uma rejeição dos alunos a este passo final de nosso curso, apenas uma indiferença ao considerar este conteúdo como apenas mais uma matéria. E a isto atribuo três fatores:


1 – A diferença de gerações. Embora seja algo bastante útil lembrar de meus tempos de escola e me colocar no lugar dos alunos, em termos ideológicos é preciso levar em conta a distância que nos separa. Aquele traço dos movimentos contraculturais tradicionais que eu pude encontrar ainda vívido nos anos 90 (hippies, punks, grunge) se encontra fora de foco na sociedade da informação. O significado de contestação social através das roupas e cortes de cabelo, por exemplo, se dissolveu em meio ao grande liquidificador cultural da modernidade líquida. 

2 – o “modo escola”, sobre o qual já escrevi anteriormente neste blog (https://filosofianaunisul.blogspot.com/2016/05/o-modo-escola.html), ou seja, no espaço escolar tudo parece perder seu brilho de antemão. Tudo é “matéria”, tudo precisa ser memorizado mas não merece maiores considerações.

 3 - O fato de fazer um estudo um pouco mais aprofundado e demorado deste tema. Rompendo com o ritmo rápido de conteúdos, passamos os dois últimos bimestres trabalhando sobre a mesma questão, aprofundando-a em diversos aspectos. Com exceção de alguns alunos já mais preparados para adentrar ao ensino superior, a grande maioria parece ver isso como uma mera repetição.


Outras observações
 

  • Com o tema do romantismo, no primeiro bimestre, é interessante refletir sobre o significado de “romântico”, tal como usamos no senso comum hoje e em seu sentido intelectual. Costumo utilizar a música Índios do Legião Urbana como exemplo de uma perspectiva romântica no sentido intelectual, demarcando um ressentimento com a “civilização” e a desconfiança do ideal de progresso. A comparação com o que se considera “música romântica” hoje dá uma boa reflexão.


  • A seção de psicanálise em sala de aula, mencionada brevemente no vídeo acima, merece uma descrição a parte. Aconteceu do nada. Ao trabalhar o conteúdo sobre Freud como um dos pensadores que contribuíram para uma quebra da crença plena na racionalidade, eu costumava contar aos alunos como eu já havia feito psicanálise em minha juventude. A narrativa sobre minha primeira seção de psicanálise sempre despertava o interesse da turma inteira. Certo dia, após contar a mesma história e falar do inconsciente lancei um desafio àquela turma: quem teria coragem de se submeter a uma mini seção de psicanálise, ali mesmo? Após algumas risadas e hesitações apareceu um voluntário. Me sentei em uma cadeira bem frente ao rapaz, e perguntei: “quem é, na verdade, o Ramon?” Após a estranheza inicial com a pergunta, foi aparecendo timidamente uma autodescrição sincera, insegura mas ao mesmo tempo desejosa de se revelar. 

  Para minha surpresa os risos iniciais com a brincadeira pararam rapidamente e a escuta predominou em toda a sala. Perguntei em seguida de seus irmãos e o que ele sentia em relação a eles; da mãe; do pai; sobre o que ele fazia quando estava triste… A esta altura reinava na sala um silêncio e atenção absoluta. Mais do que isso, pude sentir um respeito muito grande pela coragem do colega em se expor e, ao mesmo tempo, uma empatia sem tamanho. É como se a, cada pergunta, cada um dos alunos ouvintes estivesse também em análise, retomando seus próprios sentimentos, suas relações familiares, etc. É possível ver isso nos olhos deles.

  A experiência deu certo e passei a reproduzir a psicanálise em sala de aula todo ano, com cada uma das turmas. É impressionante como, ao final dessa dinâmica, muitos alunos se mostram impressionados por esta pequena exploração dos conteúdos inconscientes. Mas também aprendi que é preciso ter muito cuidado e sensibilidade para conduzir as questões a um certo nível de intimidade, mas sem entrar diretamente em problemas mais sérios. Histórias de vida difíceis e grandes problemas em casa podem facilmente desencadear choro ou instabilidades. É preciso saber a hora de parar. Acho que devo o sucesso dessa prática principalmente ao fato de já tê-los como alunos a pelo menos dois anos, à relação de confiança que vamos construindo desde o primeiro ano do ensino médio. (Se você está começando agora, não tente isso em casa!)
 

  • O tema da pós modernidade aparece como um item da “caixa de ferramenta” para a compreensão da cultura do século XX. Gosto de trabalhar este tema a partir das rápidas transformações na sociedade e sua manifestação através da arte. Uma sequência de slides me permite comparar o rápido avanço das indústria automobilística e dos computadores, por exemplo, ao longo das primeira metade do século XX. Também é muito interessante comparar a arte moderna com a arte pós-moderna, na dança, artes plásticas, cinema, entre outros.
  • Por fim, meu interesse em trabalhar a contracultura como fechamento do meu curso de filosofia para o ensino médio é o de mostrar um momento histórico em que jovens passaram a refletir profundamente sobre os rumos da sociedade moderna e a tentar fazer algo sobre isso. Após apresentar os movimentos de contracultura dos anos 60 e 70, juntamente com suas músicas, cores e estilos, chegamos ao seguinte questionamento: A contracultura acabou? Por que? O tema nos leva à reflexão crítica sobre a absorção dos símbolos clássicos da contracultura pela cultura de massa, mas também aponta para a persistência de focos contraculturais no momento atual. As aulas terminam com a indicação dos movimentos ambientais e outros posicionamentos alternativos ao consumismo convencional como remanescentes da contracultura em nosso tempo.


Referências

Nas descrição das aulas vão aparecendo os ícones indicando leituras e vídeos. Para quem estiver interessado, deixo aqui as referências desses materiais complementares (elas estão na ordem em que aparecem na sequência das aulas):

Livros

CHAUÍ, M. Iniciação à filosofia: ensino médio. São Paulo: Ática, 2010.

ARANHA, M. L. MARTINS, M. P. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: moderna, 2013.

COTRIM, G. FERNANDES, M. Fundamentos de filosofia. São Paulo: Saraiva, 2010.

NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra.

MARX, K. ENGELS, F. O Manifesto Comunista. Versão eletrônica - Rocket edition, 1999.

SEARLE, J. Mente, linguagem e sociedade. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

PEREIRA, C.A.M. Há algo no ar além de aviões de carreira. In: O que é contracultura. São Paulo: Círculo do livro, s/d.

ALVES, M. As duras lições de woodstock. A Notícia, Joinville, p. 1 - 1, 15 ago. 1999.

SANTOS, F. Contracultura e a juventude brasileira. UOL -Brasil escola. Disponível em:https://brasilescola.uol.com.br/historiab/contracultura-juventude-brasileira.htm


Filmes

Os filósofos e a educação – Nietzsche (Severino, s/d). Disponível em: https://youtu.be/ayrTqjLcg_I

A onda – Dennis Gansel, 2008. Disponível em: https://youtu.be/zG3TfjAhs30

Escola de Frankfurt – Moderna, 2015 (conteúdo didático, Ed. Moderna PNLD 2015)

Sartre e Beauvoir – Globo ciência. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XKtXqm16Sog

Geração Beat – Programa Plural, 2013. Disponível em: https://youtu.be/dT5xEVNAwWo

Contracultura, geração paz e amor. Disponível em: https://youtu.be/-qJtitbudms

Woodstock, o festival que marcou uma geração. Disponível em: https://youtu.be/nbLvLlTHcmc

Tempos de rebeldia / Contracultura e psicodelia – (Kevin Alexander, s/d). Disponível em: https://youtu.be/CB_I9sPT4C8

Quase Famosos – (Cameron Crowe, 2000). Disponível em: https://youtu.be/iVmdK48wyhY

Tempos de rebeldia / O movimento Punk – (Kevin Alexander, s/d). Disponível em: https://youtu.be/PFjsIf4GVY8

A tropicália. Disponível em: https://youtu.be/Emm1oFoUtd0

Rita lee fala sobre o tropicalismo. Disponível em: https://youtu.be/WG9f5EzA9oI

Tom Zé no tropicalismo (Móbile, 2012). Disponível em: https://youtu.be/6Oxv8AQWIsk

Tempos de rebeldia / Ambientalismo radical – (Kevin Alexander, s/d). Disponível em: https://youtu.be/pgvszVrsMME

2012 tempo de mudança – (João Amorin, 2010). Disponível em: https://youtu.be/Qs3b0E8FZFw


Acompanhe o projeto "Como ensino filosofia?". Toda quinta um novo conteúdo :)

Comentários

  1. Olá Professor, Como vai ? Tenho acompanhado suas postagens. Muito bom !! Já comecei Filosofia, curso presencial, numa faculdade interior de SP. Precisei parar, infelizmente. Penso em retornar, num curso Ead. O senhor leciona na Unisul, no curso Filosofia Bacharelado ? Poderia me falar um pouco do curso ?

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    Respostas
    1. Olá Amigo (a)!

      Obrigado pelo reconhecimento. Então, estou já há 9 anos trabalhando com o curso de filosofia na Unisul Virtual e vejo que avançamos bastante na metodologia de ensino em EAD. Estamos com um ótimo grupo de professores, um material didático autoral e diversos recursos pedagógicos importantes, como as webaulas e webconferências.

      E os frutos disso, além das turmas já formadas, vieram neste mês, quando conseguimos a nota 5,0 (nota máxima) na avaliação do MEC para revalidação de nosso curso.

      Nosso curso é composto de certificações, que vc vai cursando conforme a sua disponibilidade e interesse até alcançar a formação completa e poder se formar. Particularmente, atendo as certificações de Filosofia e Ciência, Filosofia e Educação, Teoria do conhecimento e parte da História da filosofia.

      Enfim, convido vc a entrar em contato conosco e ser mais um Aluno da Filosofia na UV!

      Abraço

      Dante

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  2. Olá Professor. Obrigado pelas informações. Me animou !
    Já fiz a inscrição para o curso (aguardando análise da documentação).
    Professor, além do material didático próprio da instituição, o curso exige outras leituras (outros livros, artigos, textos filosóficos de pensadores) ?
    Observei a grade e vi que o curso pede produção de artigo e tem uma revista eletrônica de Filosofia. Entendo que o curso fomenta o aluno à pesquisa. Correto ? É isso que procuro.
    Att
    Evandro

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    Respostas
    1. Oi Evandro! Sim, o conteúdo de cada "disciplina", que nós chamamos de UA (unidade de aprendizagem) é composto não só do livro didático, mas de uma série de leituras e vídeos presentes em nosso ambiente virtual. De fato, mais ao final do curso temos a certificação de produção do artigo científico, que envolve uma iniciação à pesquisa em filosofia. Sou eu o professor dessa certificação.
      Seja bem vindo, nos encontramos no EVA!

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  3. Olá!
    Sou aluna do curso de filosofia da Unisul EAD, desde 2017.
    O curso é muito bom, sobretudo em função dos bons professores, destacando o professor Dante. O material é ótimo e a plataforma é bem intuitiva.

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