Como ensino filosofia? #10 - A arte da convivência



Parte III - práticas de ensino

  Até aqui os vídeos e postagens desta série Como ensino filosofia? abordaram o ensino de filosofia no nível médio apenas a partir do conteúdo. Mas nos últimos anos me dei conta de que ensinar o conteúdo de filosofia é apenas a metade do que eu ensino nas salas de aulas. E, considerando a particularidade dos meus companheiros de trabalho (falo dos meus alunos), em muitos casos é a parte menos importante. Sendo assim, o que mais eu ensino? Tantas coisas que eu nem sei…

  Digamos que o conteúdo é o “recheio”, o estofo teórico de uma aula. Mas além disso uma aula é um encontro de sujeitos, é um momento de convivência onde o que acontece é o cruzamento de dois mundos: o do professor e o dos alunos (enquanto turma, fora os “muitos mundos”, enquanto indivíduos). Então, se eu limito minha interação com meus alunos ao meu objetivo imediato de “passar um conteúdo”, estou aproveitando pouco do que a ocasião deste encontro pode proporcionar em termos de possibilidades de aprendizagem para todos os sujeitos envolvidos (inclusive eu).

  O que quero dizer é que muitas vezes uma aula se torna significativa pelas conversas com a turma, pelas risadas e piadas, pelos assuntos que emergem nessa convivência semanal. Basta que você, professor, se acostume a fazer um balanço diário sobre os melhores momentos em sala de aula, para constatar que muitas vezes estes momentos não estão relacionados ao conteúdo ensinado.

  Seria esse o indicativo de um fracasso? Penso que não. O que se pode deduzir daí é que uma aula é a ocasião para se ensinar muitas coisas, até sem palavras. E eu passei a fazer disso também o momento de aprender filosofia, no sentido mais amplo de sustentar uma postura aberta e questionadora diante da vida e levantar assim interrogações e debates. É no ato de conviver e trocar experiências que vai se abrindo um espaço, não para “narrar” filosofia (lembrando da crítica de Freire à educação bancária), mas para mostrar filosofia por meio de atitudes.

  E quando falo em demonstrar uma atitude filosófica, isso não se trata necessariamente de ficar divagando o tempo todo, ou atuar como uma espécie de enciclopédia ambulante, fazendo referências filosóficas em relação a tudo. Falo é de coisas mais simples, como não se apresentar como um sabe tudo, mantendo a consciência socrática de que, no fundo, não sabemos. Falo em estar aberto a aprender, não somente com os livros, mas com os próprios alunos; em ser curioso; em ser imaginativo; em ser estudioso e deixar transparecer seu gosto pela cultura. Falo em discutir abertamente temas tabus, sem lição de moral pronta; em escutar e valorizar o que o outro pensa, mesmo que você já tenha percorrido estes caminhos. Falo em comprometimento e em manter a palavra.

  Posso dizer então que meu ensino de filosofia vai se dando em dois trilhos: o do conteúdo e o da convivência. É o que tentei expressar no vídeo a seguir:



A arte da convivência

   Enquanto o conteúdo a ser ensinado é algo planejado previamente, o aspecto da convivência nos traz elementos espontâneos. E nossa reação a estes eventos contingentes é que vão delineando então o currículo oculto que complementa qualquer processo de aprendizagem. Se desconhecemos esta dimensão mais sutil da interação entre professor e aluno, o currículo oculto figura como algo fora de nosso controle, podendo inclusive mostrar-se antagônico ao currículo formal que estamos ensinando (pense em um professor trabalhando um texto sobre tolerância e compreensão, mas que se comporta justamente de forma intolerante e repreensiva diante de manifestações dos alunos sobre o texto). Entretanto se estivermos atentos ao currículo oculto, é possível aplicar aí alguma intencionalidade, ensinando coisas diversas. E é justamente aí que eu tenho encontrado mais espaço para ensinar filosofia em minhas aulas.

  Tentando estabelecer diariamente uma boa convivência com meus alunos eu ensino filosofia com a pessoa que sou, integralmente. Isso implica, inclusive, em manter-me no empenho de, a cada vez, ser uma pessoa melhor. Por vezes, uma tomada de decisão na direção da tolerância, da paciência, da abertura, da boa vontade, pode ensinar muito mais do que mil palavras. E as dificuldades de conviver com o outro vão marcando, a cada dia, desafios e também oportunidades.

  Mas é preciso levar em conta que a convivência com os alunos se dá em nosso fazer diário em sala de aula, não num ambiente livre. É preciso então encontrar entre quatro paredes a chave para não chegar à conclusão sartreana de que o inferno são os outros! É justamente neste ponto que um pouco de imaginação pode nos ajudar a encontrar brechas na rotina da sala de aula para uma convivência mair rica e menos desumanizada.

  Em resumo, nas postagens desta terceira fase passo a compartilhar estratégias desenvolvidas ao longo destes anos para tornar o espaço da sala de aula algo mais agradável e estimulante para o ensino de filosofia. Estas estratégias compreendem elementos didáticos concretos (como jogos ou métodos para fazer algo), mas também princípios gerais que norteiam a minha prática e que me parecem ser coerentes com uma atitude filosófica. 


Acompanhe o projeto "Como ensino filosofia?". Toda quinta um novo conteúdo :)




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