Como ensino filosofia? # 36 - Aula sem matéria



  É um fato que a diversidade e complexidade das limitações da educação escolar sugerem uma demolição. Ou seja, para implantar a educação que realmente queremos, algo que possa ser coerente e verdadeiramente significativo para crianças e jovens do século XXI, talvez seja necessário mesmo reinventar por completo não apenas todo o sistema educacional, mas também a escola e o próprio ato (melhor dizendo, as performances) de ser professor e de ser aluno. No dizer de Edgar Morin em A cabeça bem feita(2011), o que precisa ocorrer é um movimento recorrente e retroativo de repensar a reforma e reformar o pensamento.

   Acho que nunca enunciei isso diretamente, mas se você tem acompanhado as postagens desta série desde o início, deve estar claro que as singelas reflexões, sugestões e estratégias compartilhadas aqui seguem por uma via tangente: a via de quem, inserido diariamente no chão da escola, não consegue ficar parado esperando o colapso para reinventar tudo; mas ao mesmo tempo não pretende seguir reproduzindo o modelo sem ao menos tentar intervir. Em uma palavra: fazemos o que podemos com aquilo que se encontra à mão. Mantendo na consciência toda a radicalidade das críticas à educação escolar anteriormente esboçadas, é preciso seguir encontrando pequenas soluções para um dia após o outro. E é justamente neste sentido que comecei a construir a proposta de uma aula sem matéria, como um um possível caminho para tentar superar as limitações e o engessamento da educação escolar.

  Como indiquei no vídeo, minha intuição é a de que grande parte do automatismo que sabota relações autênticas de construção de conhecimento entre um professor e seus alunos é o próprio formato matéria-explicação-prova. Assim surgiu a tentativa de subtrair o primeiro elemento desse circuito abrindo espaço para outras coisas e ver o que acontece. A concepção de uma sequência de aulas sem matéria para copiar nos permite abrir bastante espaço em nosso planejamento e nos força a imaginar outras formas de interação com os alunos para passar uma mensagem; para “transmitir um conteúdo”.

  De qualquer modo, experiências passadas haviam me mostrado que a abolição da matéria para copiar faz a alegria dos alunos em um primeiro momento e até garante uma atenção extra ao discurso do professor por uma ou duas aulas; não mais do que isso. Porém, se não há um planejamento muito sólido de atividades para cada uma das aulas; e se tais atividades não se diversificam do simples ouvir as “explicações” do professor, rapidamente isso se reverte numa percepção coletiva de que não é preciso fazer nada nas aulas e que tudo segue desordenadamente. Já vi diversos professores (inclusive eu mesmo) desistirem de seus planejamentos inovadores neste sentido, por não conseguirem conquistar credibilidade e cooperação de suas turmas. Esse tipo de comportamento dos alunos produz então falas já muito repetidas entre os docentes: “A gente tenta fazer algo diferente e eles não cooperam. Só resta voltar para o tradicional”.

  Sem dúvida, o coletivo de alunos em uma situação de aula (uma turma) certamente mantém parte da responsabilidade pela estagnação do ensino escolar. Alunos são bem mais conservadores do que eles mesmos podem perceber e tendem a reagir mal a propostas de mudança no esquema básico das aulas. Isso por que a passividade diante de aulas expositivas traz um conforto do qual nem todos querem abrir mão. Ainda que frequentemente clamem por algo diferente, na maior parte das vezes os alunos não estão prontos para mudanças substanciais no molde do ensino escolar. E isso se explica pelo fato de estarem sendo condicionados há muitos e muitos anos (e com muito custo em certos casos) a estes moldes. Entretanto, em minha opinião isso pode mudar, desde que as transformações sejam mais lentas e pontuais.

  Enfim, de tanto pensar sobre essas coisas, acho que é possível esboçar aqui alguns princípios gerais que adotei para a implantação dessas aulas sem matéria, mas que também podem servir para outras propostas inovadoras do modelo tradicional:

1 – Retirar a matéria escrita do quadro, mas continuar falando e falando, na esperança de que os alunos vão anotar tudo é uma ilusão. A escola não é a faculdade, é preciso treinar gradualmente os alunos para que consigam fazer suas próprias anotações. Isso deve ser uma meta, não um pressuposto. De qualquer modo essa prática pode e deve se constituir em um tipo de atividade a ser treinada nas aulas.

2 – É possível pensar em atividades alternativas a copiar a matéria do quadro e variar entre elas, no sentido que cada aula seja “aula de alguma coisa”. Como eu disse no vídeo: aula de ler e escrever, de conversar e debater, de ver um vídeo, de construir alguma coisa. Esses diferentes tipos de aula podem variar em um ciclo. Padrões ajudam a manter as coisas nos trilhos.

3 – É importante que cada encontro (uma ou duas aulas) seja para desempenhar apenas um tipo de atividade, de maneira a deixar bem claro o que estamos fazendo em sala.

4 – É preciso deixar muito claro qual o objetivo de cada aula e a relação com aquilo que se está a aprender. Caso contrário, permanece a sensação de que trata-se de atividades aleatórias. Tenha em mente que você fez o planejamento; ou outros não necessariamente o verão em cada uma das atividades.

5 - O caderno também não pode ser abandonado de vez. Um caderno em branco, infelizmente indica para diretores, pais e os próprios alunos, que naquela aula não se “faz nada”. Daí a ideia de cobrar anotações e registros de aulas e de colar no caderno as produções textuais do aluno. O caderno precisa permanecer como uma ferramenta usada na aula e pode ser usado como uma das formas de avaliar

6 – Pense em módulos curtos para alcançar um conteúdo ou objetivo de aprendizagem. Frequentemente grande parte dos alunos não se lembra o que houve na aula passada, então dois ou três encontros é o máximo que se pode conseguir, de início.

7 - Ao planejar atividades também é preciso pensar em si mesmo: o quanto de energia elas demandam e o quanto de organização prévia ou materiais. Como tais atividades terão de ser reproduzidas em diversas turmas, as vezes no mesmo dia, ela precisam de uma base simples para funcionar.

   Enfim, o que pretendo mostrar nos episódios seguintes, para encerrar esta série, é a experiência concreta de um bimestre com aula sem matéria para o primeiro e segundo ano do ensino médio.

Acompanhe o projeto "Como ensino filosofia?". Toda quinta um novo conteúdo :)

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