Como ensino filosofia? # 35 - Produções textuais (pesoais) como forma de avaliar




  Como mencionei no texto do episódio passado, as minhas tentativas de dar mais ênfase à educação emocional de forma integrada aos conteúdos de cada série receberam o apoio de uma forma específica de avaliação; a redação ou produção textual.

  Já há algum tempo tenho substituído algumas das provas por estas redações, com um resultado bastante positivo. A ideia central é proporcionar ao aluno um momento de elaboração de um discurso próprio relacionado à sua própria vida ou experiência. Diferente da abordagem mais dissertativa que é característica das redações, aqui o foco é introspectivo. Os temas são sempre relacionados de alguma forma ao conteúdo, mas com ênfase na experiência pessoal do indivíduo.

   Com esse exercício os objetivos são: 
  • Exercitar a capacidade de se expressar sobre seus pensamentos e sentimentos; 
  • Treinar a escrita; 
  • Desenvolver a habilidade de construir um texto.
  Mas para alcançar estes objetivos, percebi que são necessárias algumas condições específicas, ou melhor um encaminhamento cuidadoso da atividade.

   Em primeiro lugar, muitos de meus alunos tem verdadeira aversão à palavra “redação”. Basta que ela seja pronunciada para que um suspiro geral de desânimo ecoe pela sala. Isso ocorre por que eles tem sido condicionados por professores de língua portuguesa a se concentrar mais em atingir o formato padrão de uma redação do que em desenvolver um conteúdo próprio. Quando pensam em redação, lhes vem à mente as exigências de elaborar uma introdução, desenvolvimento e conclusão; e outras regras mais. Lhes vem à mente a demanda de ter que falar sobre algo como quem domina o assunto e não a possibilidade de ir buscar em seu íntimo um conteúdo e expressá-lo. Assim, mudei meu vocabulário. Chamo simplesmente de texto ou produção textual. Não há um formato obrigatório. Tudo o que eu exijo é um texto pessoal e escrito corretamente.

   O tamanho é sempre um problema. Não se passa uma só atividade dessas que alguém não pergunte: “quantas linhas?”. Minha resposta é sempre a mesma: “não tem número de linhas, escrevam o máximo que conseguirem.”. E sempre alguém retruca: “o máximo que eu consigo é três, pode ser?”. Todos riem e eu sempre respondo: “Não; é pouco demais, tente escrever mais”. E nessa dialética vamos nos acertando ao longo do ano.

  Em segundo lugar, é imprescindível que esse exercício seja feito em sala; ali mesmo na hora. Deixar como tarefa para casa não costuma funcionar. É muito grande a chance que os alunos não façam em casa e escrevam qualquer coisa correndo uma aula antes da sua, ou copiem de um colega. Meu objetivo é justamente proporcionar uma experiência pessoal a partir daquele momento de concentração diante da exigência de ter que se expressar.

E a concentração é sempre um problema sério. Enquanto alguns alunos já compreenderam o que deve ser feito e começam a tentar escrever, outros vão demorar mais uns 10 minutos para entrar no clima, atrapalhando os demais. E os primeiros que terminarem, por sua vez, passam a conversar e atrapalhar aqueles que começaram mais tarde (situação típica em sala de aula). Assim, criei um procedimento, uma espécie de protocolo, que funciona muito bem para evocar a concentração da turma toda ao mesmo tempo. Segue uma descrição:

Exercício de concentração para começar a escrever

1 – Escreva o título no quadro.

2 – Sente-se em uma cadeira, sem a sua mesa, bem na frente dos alunos; deixe o seu espaço de professor para trás por um momento.

3 – Peça aos alunos que larguem as canetas ou qualquer coisa que tiverem nas mãos. Não siga em frente antes que todos tiverem feito isso.

4 – Peça aos alunos que acertem a postura na cadeira: pés alinhados e virados para frente e coluna ereta na cadeira, usando o encosto. (Esse passo costuma dar muita reclamação. Insista, explique que é só por um momento e que isso vai ajudar na concentração).

5 – Faça junto com os alunos 3 respirações. Feche os olhos e dê o comando (como em uma aula de yoga): “Inspira – solta o ar devagar.” A cada inspiração e expiração sua voz vai se tornando mais calma e introspectiva. (Esse passo sempre provoca brincadeiras de alguns. Nunca pare o exercício para chamar a atenção, mantenha o foco e siga em frente mesmo com as brincadeiras.).

6 – Logo após a terceira respiração, permaneça de olhos fechados e diga que quem quiser fechar os olhos, pode ajudar, quem não quiser não tem problema. (aqui é preciso ser rápido, para não desfazer a concentração da sala). Repita o título do texto e comece a divagar um pouco explicando o que você espera e sugerindo possíveis caminhos para escrever o texto. Seja breve.

7 – Conte alto “1,2,3” e bata uma palma bem firme dizendo: “escreve!”
   No começo os alunos estranham muito e fazem diversas brincadeiras. Mas eu insisti nessa prática e consegui criar um procedimento de condicionamento bastante eficaz. Com o tempo, alguns alunos passaram inclusive a me pedir para fazer isso antes dos exercícios (outros nunca vão levar a sério mesmo!).

  Em terceiro lugar, é fundamental a garantia de sigilo. Muitos dos alunos se mostram preocupados sobre quem terá acesso ao conteúdo das produções textuais. Desde o início é muito importante garantir a confidencialidade deste exercício e realmente cumprir com o prometido; nada de leitura em voz alta para a sala, muito menos de comentar sobre aspectos pessoais revelados a você no conselho de classe ou na sala dos professores.

  Mas voltando à questão da produção textual, meu interesse neste tipo de avaliação aumentou à medida em que fui percebendo como um exercício como este pode se tornar gradualmente um espaço único entre as atividades escolares para que o aluno se encontre consigo mesmo. Aquilo que é muito difícil no começo, escrever algo sobre si, vai se tornando mais tranquilo e, para alguns, pode ser mesmo uma descoberta. Desde as primeiras vezes em que comecei a aplicar este tipo de atividade fiquei impressionado com a confiança que alguns de meus alunos depositaram em mim contando coisas particulares sobre seus sentimentos ou sua vida pessoal. É claro que isso também é resultado de meu esforço constante para estabelecer uma relação de proximidade com meus alunos. De qualquer forma, ficou muito claro que a necessidade de se expressar é um elemento latente na grande maioria dos jovens com que trabalhei.

  Por fim, é importante lembrar que o motivo que me levou a experimentar este tipo de avaliação também está ligado a minha crescente descrença da efetividade das provas como instrumento de real aprendizagem. Resolver provas, sejam objetivas ou dissertativas, pode sim ensinar, mas em condições muito específicas que dependem em parte da mentalidade dos alunos em relação à sua aprendizagem. Na maior parte do tempo, entretanto, provas levam apenas à ansiedade e tentativas de colar. E na outra ponta da corda, meu próprio trabalho de correção tornou-se algo bem menos mecânico; muito mais humano. Pude conhecer melhor cada um de meus alunos e ajudá-los com o hábito de se expressar e com a língua escrita, em vez de atuar como uma máquina a corrigir sempre as mesmas questões.

  Já o vídeo, uma anotação gravada em 2017, traz uma indagação para a qual ainda não tenho resposta. Prefiro deixá-la ressoando, por enquanto.

Acompanhe o projeto "Como ensino filosofia?". Toda quinta um novo conteúdo :)

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